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Tenho duas mães
Juliana Ravelli
Do Diário do Grande ABC
07/11/2010 | 07:35
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Andréa Iseki/DGABC


Se há algo que os adolescentes que convivem com duas mães concordam é: "Temos uma família diferente, mas normal." Sem receio ou vergonha, essa turma mostra como amam as pessoas que os criam, educam, dão casa, alimento, roupa, carinho e tudo o mais que qualquer filho precisa para se transformar em adulto feliz e do bem.

Pietra Gutierrez Lima, 12 anos, era pequena quando a mãe biológica assumiu a homossexualidade. Hoje, convive na mesma casa com a outra mãe e a filha dela, que considera sua irmã. Juntas, formam uma família homoparental - com pais do mesmo sexo. "Sou filha de duas mulheres, mas posso ter menos problemas que filhos de heterossexuais. Algumas amigas veem os pais sempre brigando. Isso não acontece na minha casa."

O preconceito e a falta de conhecimento fazem alguns pensar que casais homossexuais não têm capacidade de cuidar dos filhos. Há quem os associe à promiscuidade e, por isso, afirma que influenciariam negativamente as crianças. "O objetivo é criá-los direito, independentemente da orientação sexual. Além disso, um filho de pais gays não necessariamente será homossexual", explica Desirèe Cordeiro, psicóloga da medicina do comportamento.

NUMA BOA - Há três anos, Vitor Martins, 12, convive com a mãe biológica e a companheira dela. Assistir a filmes está entre os passatempos preferidos dos três. Problemas? Nenhum, segundo o garoto, que afirma que não sentiu nada de diferente quando ela falou sobre sua opção sexual. "Gosto da minha família desse jeito. A gente se dá bem. Recebo muito carinho."

Quando os pais se separaram, Matheus Carvalho, 14, ficou preocupado em saber se continuaria a ver o pai, a quem também ama muito. Porém, a mãe adotiva garantiu que isso aconteceria. Atualmente, o garoto mora com ela e a companheira. O fato de conviver com as duas nunca o incomodou. Mas nem tudo é perfeito. Matheus só não curte mesmo quando estão de TPM. "Há mais vantagens do que desvantagens. Mãe sempre acolhe e ajuda o filho. Com duas, isso é maior."

‘Minhas Mães e Meu Pai' trata do tema no cinema

A arte imita a vida real ou parte dela em Minhas Mães e Meu Pai (The Kids Are All Right), que estreia sexta no cinema. Na trama, os irmãos Joni (Mia Wasikowska) e Laser (Josh Hutcherson) são filhos do casal de lésbicas Jules (Julianne Moore) e Nic (Anette Benning). Cada uma delas deu à luz a um dos adolescentes, mas o sêmen que utilizaram para fazer a inseminação artificial era do mesmo doador.

Laser convence Joni, que está prestes a completar 18 anos e ir para a faculdade, a procurar o tal pai biológico. Encontram o alternativo Paul (Mark Ruffalo) e descobrem que o cara é legal. O problema é que a chegada de Paul modifica completamente a rotina da até então unida e feliz família.

O mais legal do longa é a forma como mães e filhos se relacionam: é um lar comum, com união, discussões, acertos e problemas. O título em inglês, aliás, é ótimo para descrever os adolescentes: As crianças estão bem, porque receberam amor, atenção, educação e tudo o que precisavam para crescer.

No caso das mães, o casamento entra em crise. Mas que relacionamento de 20 anos - hetero ou homossexual - não enfrenta altos e baixos? Depois de todas as dúvidas e tempestade vem a calmaria. A gente sai do cinema acreditando que, de fato, tudo vai ficar bem. Minhas Mães e Meu Pai foi superelogiado nos Festivais de Cinema de Sundance e Berlim.

Sem discussão na escola

Na escola, os amigos sabem que Vitor tem duas mães. Ele nunca enfrentou dificuldades; todos lidam com naturalidade. Mas essa ainda não é a realidade da maioria dos colégios. Poucos falam sobre a diversidade sexual com os alunos.

Cláudia Vianna, professora da Faculdade de Educação da USP, conta que, durante pesquisa, concluiu que não há referências às famílias homoparentais nos livros didáticos. "Na escola, o assunto ainda entra pela janela, não pela porta da frente", diz.

Há políticas públicas - a maioria criada pelo governo federal - que incentivam a discussão do tema nas instituições de ensino. O problema é que depende dos profissionais de Educação e nem todos estão desprovidos de preconceitos ou entendem a importância.

O Programa Brasil Sem Homofobia, lançado pelo governo federal em 2004, também possui ações para fortalecer instituições que promovem a cidadania e defendem os direitos de homossexuais, além de incentivar projetos e debates sobre o assunto.

Ainda há discriminação

No aniversário de 5 anos, Pietra convidou as amigas mais próximas e contou que tinha duas mães. Uma das meninas não foi à festa. O motivo: os pais não queriam mais que a filha brincasse com ela. "As crianças crescem com o preconceito dos adultos", afirma.

Vez ou outra, Pietra ainda escu- ta ofensas de colegas na escola, dizendo que a mãe é sapatão e cresce largada (sem cuidados). "Não tenho nada a esconder. Se fosse ligar para tudo o que me dizem, estaria com depressão."

Matheus também enfrentou discriminação. Teve de terminar o namoro com uma garota após os pais dela descobrirem que ele tinha mães lésbicas. "Antes disso, eles até queriam me conhecer."

Segundo a pesquisadora Cláudia Vianna, professora da Faculdade de Educação da USP, ainda há longo caminho antes de a sociedade aceitar as famílias homoparentais. "Tem-se a ideia de que qualquer coisa fora do padrão seja uma família desestruturada. Mudar esses valores é algo lento e difícil. Muitos cresceram acreditando que a homossexualidade é doença", explica.

Perfil mudou muito nos últimos anos

O perfil do núcleo familiar está mudando. Há vários anos, a casa com pai, mãe e filhos de um único casamento não é a única opção. No Brasil, calcula-se que metade das famílias não se encaixa no padrão tradicional. Nesse caso, além de casais homossexuais, incluem-se lares comandados por mulheres (às vezes, mães solteiras), avós e até irmãos mais velhos.

Para saber como as famílias brasileiras mudaram, o Censo 2010 ganhou novas perguntas. Assim, será mais fácil definir a relação de parentesco entre as pessoas, incluindo se o companheiro é do mesmo sexo.

Direitos ainda não são os mesmos

Ainda não há lei brasileira que reconheça a união entre pessoas do mesmo sexo. No entanto, muitos Tribunais de Justiça (nos Estados) e o Superior Tribunal de Justiça (em Brasília) estão concedendo direitos - como partilha de bens e pensão após a morte - por meio de ações judiciais.

Existem outras conquistas, segundo Adriana Galvão, presidente do Comitê de Estudos e Diversidade Sexual da OAB/SP. A Receita Federal já permite a inclusão de parceiro homossexual como dependente no Imposto de Renda. Planos de saúde também aceitam o mesmo. Porém, isso não é suficiente para que gays, lésbicas e transexuais sejam tratados com igualdade como os demais.

A legislação do Brasil não permite, por exemplo, adoção por casais homossexuais, mas há casos em que a justiça autoriza. Em 2009, um casal de lésbicas de Santa Catarina ganhou o direito de registrar os gêmeos, gerados por inseminação artificial, em nome das duas mães. A decisão rara foi tomada por um juiz do Rio Grande do Sul.

Mas a guarda dos filhos, quando um dos parceiros morre, é grande problema. Pode-se fazer documentos, como testamento, manifestando a vontade de que a criança fique com o companheiro. Mas isso não exclui a necessidade de pedir nova adoção da mesma criança (se não estiver registrada em nome do parceiro vivo). Ainda não se descarta a possibilidade de que a família da mãe ou paibiológico peça a guarda.

Tema ainda é raro na tela

No cinema e na telinha, as famílias homoparentais não aparecem com frequência. Entretanto, o número de personagens gays, lésbicas e bissexuais está aumentando, segundo a organização Gay & Lesbian Al-liance Against Defamation.

Ainda hoje, o longa mais famoso é Gaiola das Loucas, cuja versão brasileira do musical estreou recentemente em São Paulo. A peça original é de 1973; cinco anos depois, veio a primeira adaptação para o cinema. Os norte-americanos levaram a trama para a Broadway, na década de 1980, e para a telona, em 1996. Na comédia, Laurent tem dois pais - um dono de boate gay e outro drag queen - e convida a família da noiva, que é muito conservadora, para jantar em casa.

Rachel, da série Glee, da Fox, também é criada por dois pais. Apesar de nunca terem aparecido, a garota sempre fala sobre a forma carinhosa como a tratavam na infância. Aliás, corre o boato de que durante a segunda temporada (que já estreou nos Estados Unidos), o casal será conhecido. Não se sabe quem faria os papéis, mas até Elton John estaria cotado para interpretar um dos personagens.

O seriado Modern Family, exibido pelo mesmo canal, mostra diferentes tipos de famílias. Entre elas a de Mitchell e Cameron, que adotam uma menina vietnamita e se transformam em pais carinhosos.

Ator defende a diversidade

André Arteche, 26 anos, encarou o desafio de interpretar um gay na TV. Ele dá vida ao cabeleireiro Julinho Santana na novela Ti-ti-ti, da Globo. Logo no início da trama, o companheiro do rapaz, Osmar (Gustavo Leão), morre em um acidente. O moço, então, tem de encarar sozinho o pai preconceituoso do ex-namorado e a mãe doente que nada sabia sobre a homossexualidade do filho morto.

Na opinião do ator, seu personagem é a prova de que o assunto passou a ser retratado na telinha de forma diferente do passado. Há alguns anos, os gays, em geral, eram algumas das figuras mais cômicas das tramas. Hoje, já protagonizam grandes dramas. "A preocupação era construir um personagem não estereotipado. O Julinho é um cara normal, tranquilo, mas com opção sexual diferente", afirma.

André torce para que o personagem ajude parte da sociedade a encarar a homossexualidade de outra maneira, com mais naturalidade. "Não é bicho de sete cabeças, mas algo simples. Só é diferente da escolha das outras pessoas."

O artista sabe que ainda há muito que mudar, pois o preconceito existe. Entretanto, acredita que no futuro as pessoas aceitarão mais a diversidade sexual. "Se a família com pais homossexuais tem amor e cuidado com os filhos, é tão carinhosa e boa como outra qualquer."




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