Martin e Stella formam um casal estruturado, liberal e politicamente consolidado - a ponto de não estranhar quando o filho Billy resolve assumir seu homossexualismo. Mas estruturas sólidas não interessam ao dramaturgo americano Edward Albee, que, na peça A Cabra ou Quem É Sylvia?, rompeu convenções para testar os limites da tolerância dos espectadores. Afinal, aquela família tão correta desmorona quando Billy confessa uma incontrolável paixão pelo pai e Martin, por outro lado, revela estar traindo a mulher.
"Fiquei apaixonado pelo texto quando o assisti na Broadway, em 2002", conta Jô Soares, que traduziu a peça e assumiu a direção da montagem, que estréia amanhã (hoje para convidados) no Teatro Vivo (tel.: 7420-1520), em São Paulo. "As relações familiares sempre interessaram a Albee e, aqui, ele busca o limite."
De fato, a relação incestuosa entre pai e filho, que chegam a trocar um beijo caliente, é apenas o primeiro choque a ser aplicado na platéia: pressionado por Ross, um famoso apresentador de TV, Martin confessa que trai Stella com uma cabra chamada Sylvia. Não se trata de uma figura de linguagem, mas de um animal verdadeiro, que ele conheceu quando procurava uma casa de campo. Em uma das falas da peça, Martin diz que, tão logo olhou para a cabra, a afeição foi imediata e, em poucos minutos, a cabeça macia do animal repousava em suas mãos.
"De uma forma inteligente e provocadora, Albee questiona as pessoas que não aceitam as diferenças", comenta o ator José Wilker, que vive Martin. "Por mais absurda que possa parecer, a paixão dele por uma cabra é uma história de amor grave, mas leve, em um tempo de tanta intolerância." Ele lembra que a peça foi escrita em 2002, quando as reações contra os ataques terroristas de 11 de setembro do ano anterior eram exacerbadas.
"Com isso, ele traça uma poderosa geografia humana." Wilker também assistiu à montagem norte-americana.
"Como todas as palavras têm importância no texto, tive muito cuidado com a tradução", comenta o diretor.
O elenco manteve o mesmo nível de atenção. "A ordem das frases tem uma precisão que não pode ser mudada para não prejudicar a fluência dos diálogos", observa Denise Del Vecchio, que interpreta Stella, a mulher traída pelo marido e pelo filho. "Em um primeiro momento, minha reação foi de revolta, mas, em seguida, comecei a entender essa paixão de Martin por uma cabra como se aceitasse a razão do outro."
A mistura de bestialidade e incesto despertou inúmeras discussões no elenco que, à medida que os ensaios progrediam, modificava alguns milímetros de sua opinião. "Não há dúvida que se trata de uma paixão animalesca", comenta, sem evitar o trocadilho, Gustavo Machado, que assume o papel do jovem Billy. "E, em se tratando de paixões, é difícil apontar quem sai vitorioso", completa Francarlos Reis, que completa o grupo, interpretando Ross.
O amor de Martin por Sylvia evoca ainda, no entender de Jô Soares, uma referência de Edward Albee à mitologia romana, especialmente na figura do fauno, que tem o corpo de um homem da cintura para cima e de um bode, no restante. "São como sátiros, cuja maior intenção é se divertir e bagunçar o ambiente. Trata-se de uma aposta evidente do dramaturgo em uma face pouco atraente do ser humano, aquela mais irracional, escondida, que poucos têm a coragem de encarar", comenta o diretor.
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