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Economista diz que desvalorizaçao pode provocar inflaçao de ativos
Do Diário do Grande ABC
31/01/1999 | 18:29
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A forte desvalorizaçao do real, ocorrida desde o dia 15, quando o governo adotou a política de câmbio livre, pode provocar uma inflaçao de ativos reais, na opiniao do economista Carlos Eduardo de Freitas, ex-diretor da Area Internacional do Banco Central (BC) e atual coordenador do curso de pós-graduaçao em economia da Fundaçao Getúlio Vargas (FGV). Essa inflaçao de ativos reais seria provocada pela migraçao das aplicaçoes financeiras para a compra de apartamentos, casas, propriedades rurais, bens de capital, equipamentos, microcomputadores, gado, entre outros.

Freitas alerta para o fato de que essa migraçao poderá contaminar o resto da economia e provocar a elevaçao de preços de bens e serviços de uma maneira geral. Para enfrentar esse movimento, o governo teria de elevar as taxas de juros. O problema, na avaliaçao de Freitas, é que uma política monetária mais firme está comprometida pela atual inconsistência fiscal. No lugar de obter um superávit primário de 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB), como o governo se comprometeu, Freitas acha que o superávit teria de ser de 5% do PIB para que fosse possível pagar as taxas de juros mais elevadas. O economista acha também que, se o governo quiser mesmo manter a inflaçao deste ano abaixo de 10%, terá de fazer uma recessao de 8% a 9% do PIB. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Pergunta- A grande preocupaçao hoje é com o efeito inflacionário da forte desvalorizaçao do real, que ocorreu desde que do Banco Central decidiu adotar a política de câmbio livre. O senhor já chegou a fazer alguma avaliaçao sobre esse efeito inflacionário?
Carlos Eduardo de Freitas - Sim. Minha avaliaçao é que o impacto inflacionário pode ser muito forte. A desvalorizaçao cambial tem dois efeitos principais. O primeiro é sobre a produçao e o emprego. Os preços mudam a favor das exportaçoes e a favor do produtor interno dentro do nosso próprio mercado, em que se compete com o produtor estrangeiro. Esse é o efeito favorável, benéfico, da desvalorizaçao. O segundo efeito é sobre o patrimônio das pessoas, das empresas e do estado. Esse efeito é perverso. Cabe distinguir ainda duas situaçoes. A primeira é quando a reversao requerida do balanço de pagamento é relativamente pequena, pois o déficit em conta corrente nao é tao exagerado e nao há problemas de credibilidade decorrentes de um endividamento considerado de grande magnitude. O que acontece neste caso é que a reversao requerida é pequena e, por isso, a taxa de câmbio desvaloriza relativamente pouco. Nestas situaçoes os efeitos sobre produçao renda e emprego sao predominantes e os efeitos patrimoniais sao de segunda ordem, justamente porque a taxa varia pouco. Foi o caso da Inglaterra em 1992, por exemplo. Quando, no entanto, a desvalorizaçao e a flutuaçao de câmbio é feita num momento em que o desequilíbrio em conta corrente do balanço de pagamento é de grande magnitude e existem problemas sérios de credibilidade, por causa de endividamentos internos e externos, a reversao de balanço de pagamentos requerida passa a ser muito grande.
Pergunta- O Brasil registrou um déficit em conta corrente de seu balanço de pagamento em torno de US$ 35 bilhoes de dólares em 1998.
Carlos Eduardo de Freitas - Foi alguma coisa em torno de US$ 35 bilhoes do dólares o que ficou um pouquinho acima do déficit de 1997. Se, ao mesmo tempo, por problemas de credibilidade, o financiamento externo secou, a flutuaçao do câmbio terá que produzir um equilíbrio instantâneo tanto na conta corrente quanto na conta de capital do balanço de pagamentos. O déficit em conta corrente anda hoje no Brasil próximo a US$ 3 bilhoes de dólares por mês. Se nao conseguirmos financiar nem a rolagem da conta de capital, estimo que teremos que pagar amortizaçoes na faixa de US$ 2 bilhoes por mês. Eu nao estou considerando aí os créditos de curto prazo.
Pergunta- Com isso, o Sr. está dizendo que o Brasil precisa todo mês de US$ 5 bilhoes de dólares.
Carlos Eduardo de Freitas- Na situaçao atual, eu diria que precisa de pelo menos US$ 5 bilhoes. Se o tamanho total do buraco é de US$ 5 bilhoes, o País foi colocado numa situaçao de ter que equilibrar essa conta de uma hora para outra. Quando se libera o câmbio nessas circunstâncias, o preço do dólar vai ter que produzir um equilíbrio instantâneo dessa ordem de magnitude. Em qualquer mercado, particularmente no mercado de câmbio, a oferta de dólares, num curtíssimo prazo, tem uma grande rigidez. Além disso, o País está com dificuldades de obter até linhas de crédito comerciais de curto prazo, que poderiam eventualmente antecipar no mercado de câmbio exportaçoes que vao ocorrer em julho ou agosto e assim por diante. Essas linhas de créditos comerciais de curto prazo poderiam atenuar essa rigidez de oferta de dólares. A questao hoje é saber qual a taxa de câmbio necessária para cobrir esse buraco de US$ 5 bilhoes por mês. Eu nao sei. Mas é uma coisa muito alta, que pode inclusive provocar inadimplência de empresas e devedores no exterior.
Pergunta- Ou seja, o Sr. está dizendo que, dependendo da taxa de câmbio, as empresas terao dificuldades em honrar seus compromissos no exterior.
Carlos Eduardo de Freitas- É isso. Poderao nao conseguir honrar seus compromissos porque o equilíbrio econômico dos contratos foi quebrado.
Pergunta- Para pagar aqueles contratos feitos em dólares, as empresas terao agora que desembolsar muito mais reais do previam em seus orçamentos.
Carlos Eduardo de Freitas- Exatamente. Se alguém devia US$ 100 no exterior teria que desembolsar R$ 121 até o dia 12 de janeiro. Agora terá que desembolsar R$ 207 dólares pela mesma dívida (No dia da entrevista, sexta-feira, a cotaçao do dólar fechou em R$ 2,07). Quando isto acontece provoca-se um desequilíbrio patrimonial, em ativos. Entao, comparada com a taxa de câmbio do dia 12 ou 13 de janeiro, o patrimônio em reais dessas pessoas e empresas terá sido reduzido em 40 %, 50% ou seja lá qual for a desvalorizaçao que venha a ocorrer. Quer dizer, quem tinha patrimônio equivalente a US$ 100 agora tem o equivalente a US$ 60 ou US$ 50. Mas em relaçao aos ativos reais domésticos, como terrenos, apartamentos, fazendas, bens de capital, equipamentos, micro-computadores, boi gordo, os ativos financeiros em reais mantiveram seu valor. Aquele terreno que no dia 13 de janeiro parecia caro hoje parece mais barato. Os ativos financeiros em reais iniciarao um movimento de migraçao para ativos reais. Ou seja, para imóveis, boi gordo, automóveis, propriedades rurais. O problema é que os proprietários ou produtores desses bens antecipam esses movimentos e começam a reajustar esses preços. Isso significa, em linguagem de economista, que a demanda pela moeda experimenta uma extraordinária queda. O movimento tende a provocar uma inflaçao de ativos e essa inflaçao de ativos acaba contaminando o fluxo de produçao corrente.
Pergunta- Essa inflaçao de ativos reais pode se transformar em elevaçao de preço em toda a economia?
Carlos Eduardo de Freitas- Pode. O forte movimento no câmbio provoca uma inflaçao de ativos reais e, em seguida, uma inflaçao também de bens e serviços correntes. Os reais perderam o valor em relaçao ao dólar mas instantaneamente nao perderam em relaçao a esses outros bens domésticos que, dadas a natureza desses mercados, sao muito mais lentos para ajustar seus preços. Entao, o real ainda está valorizado em relaçao a eles. Como a demanda por moeda está caindo, as pessoas nao só vao em direçao aos ativos reais como também acabam indo em direçao aos bens de consumo de uma maneira geral. Antes que o dinheiro se desvalorize mais. É o movimento típico que faz as inflaçoes.
Pergunta- O que o governo pode fazer para evitar essa inflaçao de ativos?
Carlos Eduardo de Freitas- Para evitar a inflaçao de ativos, que a meu ver é a igniçao do processo inflacionário, o remédio clássico é a política monetária, ou seja, a subida das taxas de juros, estreitando a liquidez, estreitando a disponibilidade de reais. O raciocínio é que se a taxa de juros sobe, a pessoa começa a pensar duas vezes para se livrar de reais, porque ela tem uma remuneraçao muito boa para ficar no ativo financeiro. Aumenta-se o custo das pessoas fazerem esse movimento em direçao aos ativos reais.
Pergunta- Mas ao elevar os juros para reduzir a inflaçao de ativos, o governo termina por deprimir mais ainda a economia.
Carlos Eduardo de Freitas- É verdade. Deprime-se a economia, corta-se a renda das pessoas. As pessoas terao sua renda cortada e seu emprego cortado. Quando isso acontece, o movimento em direçao aos ativos é inibido. Ele é inibido porque de um lado existe uma remuneraçao muito boa para ficar em ativos financeiros. Por outro lado, como as pessoas estao incertas com relaçao a sua renda futura porque a economia está muito deprimida, elas ficam temerosas em se livrar da liquidez.
Pergunta- A elevaçao dos juros tem um custo sobre a dívida pública e, portanto, nao poderá ser mais um elemento negativo para a já desgastada credibilidade da política econômica?
Carlos Eduardo de Freitas- Esse é o problema. Hoje, a política monetária do governo está comprometida por causa da inconsistência fiscal.
Pergunta- Por problemas fiscais, há um limite para essa elevaçao das taxas de juro. É isso que o senhor quer dizer?
Carlos Eduardo de Freitas- É isso. Há um limite e já há uma fadiga da sociedade porque estamos com taxas de juros altas há 4 ou 5 anos. Mas, vamos dizer assim, o País está com taxas de juros extravagantemente elevadas há mais de um ano. E o maior devedor é o governo. O déficit público atingiu mais de 8 % do PIB no ano passado. Se o governo eleva muito a taxa de juros ele pode criar uma desconfiança maior em relaçao à sua capacidade de efetivamente pagar esses juros. Nesse caso, as pessoas podem simplesmente receber aquela remuneraçao mais elevada e comprar mais ativos reais. A taxa de juros pode perder grande parte do seu efeito inibidor por causa da inconsistência fiscal.
Pergunta- Entao, essa elevaçao das taxas de juros para impedir essa inflaçao de ativos reais tem que ser acompanhada de um ajuste fiscal adicional?
Carlos Eduardo de Freitas- Exatamente. Nós ficamos com a hipótese de um ajuste fiscal adicional.
Pergunta- Um ajuste ainda mais forte que mostre para os agentes econômicos que governo terá condiçao de pagar o novo custo das taxas de juros?
Carlos Eduardo de Freitas- É. Que mostre para os agentes que governo terá condiçao de pagar e que deprima a economia o suficiente para desanimá-la a sair para ativos reais.
Pergunta- O governo anunciou que sua meta é impedir que a inflaçao atinja dois dígitos. Na sua avaliaçao, qual seria a dimensao da queda do produto para manter a inflaçao em um dígito?
Carlos Eduardo de Freitas- Esse cálculo é difícil de ser feito. Mas podemos tomar como referência o que se passou no Brasil em 1983, quando o Produto Interno Bruto caiu 3,9 % e a inflaçao passou de 100% para 220% ou 230% ao ano. Para atingir a meta do governo, de inflaçao de um dígito ao ano, estimo que a queda do PIB tem que ser alguma coisa tao extravagante que nao sei como expressar. Eu estou falando em 9 % de reduçao do PIB, eu estou falando 8 % de queda do PIB, alguma coisa dessa magnitude para evitar a retomada da inflaçao, tal o desequilíbrio patrimonial que foi provocado pela desvalorizaçao. Algumas ponderaçoes precisam ser feitas. A economia brasileira já vem recessiva. O fato de ela já vir recessiva, a cerca de um ano ou mais que um ano, pode inibir um pouco esse movimento de reequilíbrio forte, quer dizer, o adicional pode eventualmente nao ser tao forte. Pode ser também que o Brasil, lá pelo final do ano, consiga voltar paulatinamente a ter acesso aos mercados financeiros internacionais. Agora, sem dúvida essa travessia para chegar ao final do ano com acesso a mercados financeiros internacionais resultará numa recessao que eu nao temo dizer que vai ser a maior da história do Brasil.




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