Freitas alerta para o fato de que essa migraçao poderá contaminar o resto da economia e provocar a elevaçao de preços de bens e serviços de uma maneira geral. Para enfrentar esse movimento, o governo teria de elevar as taxas de juros. O
problema, na avaliaçao de Freitas, é que uma política monetária
mais firme está comprometida pela atual inconsistência fiscal.
No lugar de obter um superávit primário de 2,5% do Produto
Interno Bruto (PIB), como o governo se comprometeu, Freitas acha
que o superávit teria de ser de 5% do PIB para que fosse
possível pagar as taxas de juros mais elevadas. O economista
acha também que, se o governo quiser mesmo manter a inflaçao
deste ano abaixo de 10%, terá de fazer uma recessao de 8% a 9%
do PIB. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Pergunta- A grande preocupaçao hoje é com o efeito inflacionário
da forte desvalorizaçao do real, que ocorreu desde que do Banco
Central decidiu adotar a política de câmbio livre. O senhor já
chegou a fazer alguma avaliaçao sobre esse efeito
inflacionário?
Carlos Eduardo de Freitas - Sim. Minha avaliaçao é que o impacto
inflacionário pode ser muito forte. A desvalorizaçao cambial tem
dois efeitos principais. O primeiro é sobre a produçao e o
emprego. Os preços mudam a favor das exportaçoes e a favor do
produtor interno dentro do nosso próprio mercado, em que se
compete com o produtor estrangeiro. Esse é o efeito favorável,
benéfico, da desvalorizaçao. O segundo efeito é sobre o
patrimônio das pessoas, das empresas e do estado. Esse efeito é
perverso. Cabe distinguir ainda duas situaçoes. A primeira é
quando a reversao requerida do balanço de pagamento é
relativamente pequena, pois o déficit em conta corrente nao é
tao exagerado e nao há problemas de credibilidade decorrentes de
um endividamento considerado de grande magnitude. O que acontece
neste caso é que a reversao requerida é pequena e, por isso, a
taxa de câmbio desvaloriza relativamente pouco. Nestas situaçoes
os efeitos sobre produçao renda e emprego sao predominantes e os
efeitos patrimoniais sao de segunda ordem, justamente porque a
taxa varia pouco. Foi o caso da Inglaterra em 1992, por exemplo.
Quando, no entanto, a desvalorizaçao e a flutuaçao de câmbio é
feita num momento em que o desequilíbrio em conta corrente do
balanço de pagamento é de grande magnitude e existem problemas
sérios de credibilidade, por causa de endividamentos internos e
externos, a reversao de balanço de pagamentos requerida passa a
ser muito grande.
Pergunta- O Brasil registrou um déficit em conta corrente de seu
balanço de pagamento em torno de US$ 35 bilhoes de dólares em
1998.
Carlos Eduardo de Freitas - Foi alguma coisa em torno de US$ 35 bilhoes do dólares
o que ficou um pouquinho acima do déficit de 1997. Se, ao mesmo
tempo, por problemas de credibilidade, o financiamento externo
secou, a flutuaçao do câmbio terá que produzir um equilíbrio
instantâneo tanto na conta corrente quanto na conta de capital
do balanço de pagamentos. O déficit em conta corrente anda hoje
no Brasil próximo a US$ 3 bilhoes de dólares por mês. Se nao
conseguirmos financiar nem a rolagem da conta de capital, estimo
que teremos que pagar amortizaçoes na faixa de US$ 2 bilhoes por
mês. Eu nao estou considerando aí os créditos de curto prazo.
Pergunta- Com isso, o Sr. está dizendo que o Brasil precisa todo
mês de US$ 5 bilhoes de dólares.
Carlos Eduardo de Freitas- Na situaçao atual, eu diria que precisa de pelo menos
US$ 5 bilhoes. Se o tamanho total do buraco é de US$ 5 bilhoes,
o País foi colocado numa situaçao de ter que equilibrar essa
conta de uma hora para outra. Quando se libera o câmbio nessas
circunstâncias, o preço do dólar vai ter que produzir um
equilíbrio instantâneo dessa ordem de magnitude. Em qualquer
mercado, particularmente no mercado de câmbio, a oferta de
dólares, num curtíssimo prazo, tem uma grande rigidez. Além
disso, o País está com dificuldades de obter até linhas de
crédito comerciais de curto prazo, que poderiam eventualmente
antecipar no mercado de câmbio exportaçoes que vao ocorrer em
julho ou agosto e assim por diante. Essas linhas de créditos
comerciais de curto prazo poderiam atenuar essa rigidez de
oferta de dólares. A questao hoje é saber qual a taxa de câmbio
necessária para cobrir esse buraco de US$ 5 bilhoes por mês. Eu
nao sei. Mas é uma coisa muito alta, que pode inclusive provocar
inadimplência de empresas e devedores no exterior.
Pergunta- Ou seja, o Sr. está dizendo que, dependendo da taxa de
câmbio, as empresas terao dificuldades em honrar seus
compromissos no exterior.
Carlos Eduardo de Freitas- É isso. Poderao nao conseguir honrar seus compromissos
porque o equilíbrio econômico dos contratos foi quebrado.
Pergunta- Para pagar aqueles contratos feitos em dólares, as
empresas terao agora que desembolsar muito mais reais do previam
em seus orçamentos.
Carlos Eduardo de Freitas- Exatamente. Se alguém devia US$ 100 no exterior teria
que desembolsar R$ 121 até o dia 12 de janeiro. Agora terá que
desembolsar R$ 207 dólares pela mesma dívida (No dia da
entrevista, sexta-feira, a cotaçao do dólar fechou em R$ 2,07).
Quando isto acontece provoca-se um desequilíbrio patrimonial, em
ativos. Entao, comparada com a taxa de câmbio do dia 12 ou 13 de
janeiro, o patrimônio em reais dessas pessoas e empresas terá
sido reduzido em 40 %, 50% ou seja lá qual for a desvalorizaçao
que venha a ocorrer. Quer dizer, quem tinha patrimônio
equivalente a US$ 100 agora tem o equivalente a US$ 60 ou US$
50. Mas em relaçao aos ativos reais domésticos, como terrenos,
apartamentos, fazendas, bens de capital, equipamentos,
micro-computadores, boi gordo, os ativos financeiros em reais
mantiveram seu valor. Aquele terreno que no dia 13 de janeiro
parecia caro hoje parece mais barato. Os ativos financeiros em
reais iniciarao um movimento de migraçao para ativos reais. Ou
seja, para imóveis, boi gordo, automóveis, propriedades rurais. O
problema é que os proprietários ou produtores desses bens
antecipam esses movimentos e começam a reajustar esses preços.
Isso significa, em linguagem de economista, que a demanda pela
moeda experimenta uma extraordinária queda. O movimento tende a
provocar uma inflaçao de ativos e essa inflaçao de ativos acaba
contaminando o fluxo de produçao corrente.
Pergunta- Essa inflaçao de ativos reais pode se transformar em
elevaçao de preço em toda a economia?
Carlos Eduardo de Freitas- Pode. O forte movimento no câmbio provoca uma inflaçao
de ativos reais e, em seguida, uma inflaçao também de bens e
serviços correntes. Os reais perderam o valor em relaçao ao
dólar mas instantaneamente nao perderam em relaçao a esses
outros bens domésticos que, dadas a natureza desses mercados,
sao muito mais lentos para ajustar seus preços. Entao, o real
ainda está valorizado em relaçao a eles. Como a demanda por
moeda está caindo, as pessoas nao só vao em direçao aos ativos
reais como também acabam indo em direçao aos bens de consumo de
uma maneira geral. Antes que o dinheiro se desvalorize mais. É o
movimento típico que faz as inflaçoes.
Pergunta- O que o governo pode fazer para evitar essa inflaçao de
ativos?
Carlos Eduardo de Freitas- Para evitar a inflaçao de ativos, que a meu ver é a
igniçao do processo inflacionário, o remédio clássico é a
política monetária, ou seja, a subida das taxas de juros,
estreitando a liquidez, estreitando a disponibilidade de reais.
O raciocínio é que se a taxa de juros sobe, a pessoa começa a
pensar duas vezes para se livrar de reais, porque ela tem uma
remuneraçao muito boa para ficar no ativo financeiro. Aumenta-se
o custo das pessoas fazerem esse movimento em direçao aos ativos
reais.
Pergunta- Mas ao elevar os juros para reduzir a inflaçao de
ativos, o governo termina por deprimir mais ainda a economia.
Carlos Eduardo de Freitas- É verdade. Deprime-se a economia, corta-se a renda das
pessoas. As pessoas terao sua renda cortada e seu emprego
cortado. Quando isso acontece, o movimento em direçao aos ativos
é inibido. Ele é inibido porque de um lado existe uma
remuneraçao muito boa para ficar em ativos financeiros. Por
outro lado, como as pessoas estao incertas com relaçao a sua
renda futura porque a economia está muito deprimida, elas ficam
temerosas em se livrar da liquidez.
Pergunta- A elevaçao dos juros tem um custo sobre a dívida
pública e, portanto, nao poderá ser mais um elemento negativo
para a já desgastada credibilidade da política econômica?
Carlos Eduardo de Freitas- Esse é o problema. Hoje, a política monetária do
governo está comprometida por causa da inconsistência fiscal.
Pergunta- Por problemas fiscais, há um limite para essa elevaçao
das taxas de juro. É isso que o senhor quer dizer?
Carlos Eduardo de Freitas- É isso. Há um limite e já há uma fadiga da sociedade
porque estamos com taxas de juros altas há 4 ou 5 anos. Mas,
vamos dizer assim, o País está com taxas de juros
extravagantemente elevadas há mais de um ano. E o maior devedor
é o governo. O déficit público atingiu mais de 8 % do PIB no ano
passado. Se o governo eleva muito a taxa de juros ele pode criar
uma desconfiança maior em relaçao à sua capacidade de
efetivamente pagar esses juros. Nesse caso, as pessoas podem
simplesmente receber aquela remuneraçao mais elevada e comprar
mais ativos reais. A taxa de juros pode perder grande parte do
seu efeito inibidor por causa da inconsistência fiscal.
Pergunta- Entao, essa elevaçao das taxas de juros para impedir
essa inflaçao de ativos reais tem que ser acompanhada de um
ajuste fiscal adicional?
Carlos Eduardo de Freitas- Exatamente. Nós ficamos com a hipótese de um ajuste
fiscal adicional.
Pergunta- Um ajuste ainda mais forte que mostre para os agentes
econômicos que governo terá condiçao de pagar o novo custo das
taxas de juros?
Carlos Eduardo de Freitas- É. Que mostre para os agentes que governo terá
condiçao de pagar e que deprima a economia o suficiente para
desanimá-la a sair para ativos reais.
Pergunta- O governo anunciou que sua meta é impedir que a
inflaçao atinja dois dígitos. Na sua avaliaçao, qual seria a
dimensao da queda do produto para manter a inflaçao em um
dígito?
Carlos Eduardo de Freitas- Esse cálculo é difícil de ser feito. Mas podemos tomar
como referência o que se passou no Brasil em 1983, quando o
Produto Interno Bruto caiu 3,9 % e a inflaçao passou de 100%
para 220% ou 230% ao ano. Para atingir a meta do governo, de
inflaçao de um dígito ao ano, estimo que a queda do PIB tem que
ser alguma coisa tao extravagante que nao sei como expressar. Eu
estou falando em 9 % de reduçao do PIB, eu estou falando 8 % de
queda do PIB, alguma coisa dessa magnitude para evitar a
retomada da inflaçao, tal o desequilíbrio patrimonial que foi
provocado pela desvalorizaçao. Algumas ponderaçoes precisam ser
feitas. A economia brasileira já vem recessiva. O fato de ela já
vir recessiva, a cerca de um ano ou mais que um ano, pode inibir
um pouco esse movimento de reequilíbrio forte, quer dizer, o
adicional pode eventualmente nao ser tao forte. Pode ser também
que o Brasil, lá pelo final do ano, consiga voltar
paulatinamente a ter acesso aos mercados financeiros
internacionais. Agora, sem dúvida essa travessia para chegar ao
final do ano com acesso a mercados financeiros internacionais
resultará numa recessao que eu nao temo dizer que vai ser a
maior da história do Brasil.
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