José Clementino detalha superação do analfabetismo e desigualdade após fuga do Piauí; em Santo André, busca apoiadores para 2ª edição de obra
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José Clementino de Carvalho, 89 anos, encontrou na literatura a sobrevivência das raízes construídas na terra natal, Itainópolis, no Piauí, que precisou deixar em fuga. De origem humilde, foi justamente a arte que o incentivou a aprender a ler e a escrever, com propósito de registrar seus cordéis, que deram origem a um primeiro livro, O Vaqueiro e o Vendedor, de 2017, escrito em Santo André, com o auxílio dos filhos.
Em versos com ritmo, rimas e respeito à liberdade (até dos erros) presente na linguagem falada, o livro aguarda a parceria de editoras para a impressão de uma segunda edição.
“Este trabalho de cordel já nasce com a gente por lá (Nordeste), mas tem de marcar na hora e, para piorar, não sabia ler nem escrever. Quando a poesia começou a me apertar, um tempo depois de colocar os pés em São Paulo, decidi que ia para a escola. A única oportunidade que tive antes disso foi dos 4 aos 9 anos, quando aprendi pouco na fazenda de uma família rica em que meus pais trabalhavam no Piauí. Eles moravam lá, só que também não recebiam nada pelo que plantavam”, lembra.
O forte laço com o campo desde os 14 anos, no pastoreio de gados, não se tornou o único traço simbólico de João. Isso porque, justificando a escolha do par de profissões que estampa o título da obra, anos depois ele achou em um jornal, em São Caetano, o anúncio do emprego que mudaria sua vida. Mesmo analfabeto, o vaqueiro se tornou um dos ‘vendedores’ da Singer, a principal fabricante de máquinas para costura domésticas, no Brás, em São Paulo.
A FUGA
Ele revela que, para despistar a morte aos 35 anos, foram 30 dias escondido em mata, a esposa e seis filhos deixados para trás (correspondidos apenas por carta durante anos), além de 80 km percorridos no lombo de um animal, para chegar à estrada onde pegaria o primeiro ônibus e que o levaria a uma das maiores metrópoles do mundo: São Paulo. De acordo com José, esta era a única forma de não ser morto a mando de um fazendeiro, desembargador de Justiça.
Quando trabalhava para o magistrado, José foi acusado de ladrão por um colega de trabalho. “Discutimos, apanhei e o cara também ficou machucado. Imaginei que o patrão ficaria do meu lado, porque a situação tinha sido esclarecida, mas contei quase 20 pessoas me perseguindo, inclusive depois até em São Paulo.”
Com uma cicatriz considerável no braço e sem conseguir emprego, ele afirma ter visto com desilusão como outros da república nordestina em que morava no bairro Nova Gerti, em São Caetano, arrumavam emprego em empresas como Termomecânica e Volkswagen na região. Então, passou a comprar roupas na Capital e vendê-las nas obras do Metrô Linha 1-Azul (Jabaquara ao Tucuruvi) da época.
“Já era vendedor de tudo. Não só de boi e cavalo. Como a vaga que vi da Singer pedia boa vestimenta, minha solução foi comprar roupas de uma loja que estava em falência. Mas ainda tinha o ponto de que era preciso saber ler e escrever. Só que nem preencher ficha eu sabia”.
Por isso, José, que vendia sozinho a mesma quantidade de máquinas que toda a equipe na semana, nunca foi registrado e não conseguiu sua aposentadoria com a companhia. “Apesar disso, minha situação financeira melhorou. O quão pobre era me ajudou a vender: as pessoas olhavam os bem-vestidos e eu em trapos, queimado do Sol, só que passando confiança, por falar a verdade ao vender. Mesmo sem ‘leitura’, isso não me impedia de me comunicar e até trazer minha família, bem desnutrida, para cá”, conta o cordelista, que conseguiu comprar enfim um imóvel no Parque São Rafael (Zona Leste da Capital, na divisa com Mauá).
ARTE EM SANTO ANDRÉ
Morador do bairro Bangu desde 2020, foi em Santo André e inspirado pela frase “É melhor escrever errado a coisa certa do que escrever certo a coisa errada”, do cearense e grande cordelista Patativa do Assaré, que João buscou novas perspectivas por meio do estudo.
“A gente não tem idade para estudar e, sim, para aprender, para não depender dos outros. Hoje escrevo todo dia, também em devoção ao meu ‘Padim Ciço’, santo do sertão e em memória à voz do grande pernambucano, Luiz Gonzaga. E tenho fé em conseguir imprimir mais uma edição de livro”, afirma o piauiense, nascido em 1º de março de 1935
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