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Repressão à Igreja Católica na Nicarágua causa medo entre os fiéis, no país e no exílio
17/02/2024 | 15:51
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Dezenove padres expulsos do país, dezenas de incidentes de intimidação e profanação de igrejas, áreas rurais onde faltam serviços sociais e de culto: a situação dos fiéis e clérigos católicos na Nicarágua tem piorado em 2024, segundo padres exilados, leigos do país da América Central e defensores dos direitos humanos.

O medo da repressão em curso pelo presidente Daniel Ortega, que atinge especialmente a Igreja Católica mas não poupa denominações evangélicas, tornou-se tão difundido que está silenciando as críticas ao governo autoritário vindas de cima do púlpito, e até as menções à opressão.

"O silêncio fica cada vez mais profundo", diz Martha Patricia Molina, uma advogada nicaraguense que fugiu para os Estados Unidos. Seu trabalho registrando centenas de casos de perseguição à Igreja recentemente lhe renderam um Prêmio Internacional de Liberdade Religiosa pelo Departamento de Estado dos EUA.

"Se é perigoso rezar um terço na rua, é extremamente perigoso denunciar ataques", diz Molina.

"Muitos padres acreditam que, se denunciarem, haverá mais represálias contra as comunidades. Nós, como leigos, gostaríamos que eles se pronunciassem, mas as únicas alternativas são o cemitério, a prisão, ou o exílio."

Ela relatou 30 profanações a igrejas no ano passado, apenas algumas delas relatadas às autoridades. Recentemente, ouviu falar de um padre que procurou a polícia após a ocorrência de um furto em sua igreja, e foi xingado e informado de que era um dos suspeitos.

"A vida na Nicarágua é um inferno, porque a vigilância é brutal. Você não pode dizer nada contra o governo", conta um padre exilado. Como ele, a maioria dos exilados entrevistados para esta matéria falou à Associated Press sob condição de anonimato, por medo de represálias contra suas famílias ou comunidades na Nicarágua.

"As pessoas agora mantêm a cabeça baixa e se perguntam: se fazem isso com os padres, o que fariam conosco?", acrescenta o sacerdote. Ele foi impedido de retornar à Nicarágua, onde atraiu a ira do governo, como muitos padres e freiras, por oferecer abrigo e primeiros socorros às pessoas feridas quando o governo de Ortega reprimiu violentamente enormes protestos cívicos em 2018.

A indignação naquele momento, que começou contra uma proposta de cortes na seguridade social, foi se ampliando para exigir eleições antecipadas e acusar Ortega de medidas autoritárias, após centenas de manifestantes serem mortos pelas forças policiais e grupos civis aliados.

Como vários outros governos latino-americanos cujas origens remontam às revoluções socialistas, a Nicarágua tem uma relação instável com as lideranças religiosas há décadas. Mas esses protestos desencadearam uma perseguição sistemática e crescente à Igreja, que a Comissão de Liberdade Religiosa Internacional do governo dos EUA chama de "campanha de intimidação e perseguição intensa".

Ortega e sua esposa, Rosario Murillo, que também é a vice-presidente, culpam o clero "terrorista" por apoiar os protestos civis, que alegam serem equivalentes a planejar um golpe de estado contra eles. Clérigos e observadores leigos dizem que o governo está tentando reprimir a Igreja porque ela continua sendo uma das raras vozes críticas na Nicarágua que ousa se opor à violência estatal e é respeitada por muitos cidadãos.

O "exílio sem precedentes de vozes dissidentes" na Nicarágua, de lideranças religiosas a jornalistas e artistas, equivale a um "plano de censura total", segundo Alicia Quiñones, que está à frente da organização pela liberdade de expressão PEN International nas Américas.

Ela acrescenta que ficou quase impossível fazer jornalismo independente na Nicarágua, e menciona a prisão de um jornalista, no ano passado, sob a acusação de "informações falsas", por ter feito a cobertura de uma celebração de Páscoa depois que as festas católicas foram em grande parte proibidas.

"A pressão está se tornando insuportável", diz um padre que agora está nos Estados Unidos. Como muitos, ele conta que os fiéis que vão à missa começaram a perceber pessoas nos bancos da igreja que nunca haviam visto antes, e temem que estejam lá para denunciar qualquer indício de oposição ao governo, mesmo que seja apenas uma oração pela segurança dos clérigos presos em condições frequentemente perigosas.

Em um país onde mais de 80% da população é cristã, cerca de 50% de católicos e 30% de evangélicos, segundo a comissão de liberdade religiosa dos EUA, a repressão causa efeitos profundos, espiritual e materialmente.

Ela não atingiu apenas o clero e as ordens religiosas, mas estudantes universitários, populações minoritárias e marginalizadas, e até pequenos comércios nas cidades rurais, cuja subsistência dependia das festas de santos e procissões religiosas, que agora foram quase todas proibidas ou acontecem em lugares fechados.

Em novembro, Molina disse que muitos padres foram proibidos de celebrar as tradicionais missas em cemitérios pelo Dia dos Mortos, uma celebração importante em toda a América Latina.

O congresso da Nicarágua, dominado pela Frente Sandinista de Libertação Nacional, de Ortega, já fechou mais de 3 mil organizações não governamentais, incluindo a instituição de caridade de Madre Teresa, criando uma grande lacuna nos serviços sociais, especialmente na zona rural. Além de muitos bens diocesanos, o governo confiscou a prestigiosa Universidade da América Central, cujas lideranças jesuítas haviam aberto as portas para alunos manifestantes que fugiam de ataques paramilitares e da polícia.

Apesar do medo crescente, muitos fiéis continuam a frequentar as celebrações religiosas, onde elas continuam disponíveis. Especialmente na zona rural, paróquias e capelas ficaram sem padres, embora nos seminários ainda existam alunos, e alguns fiéis esperem que possam vir a substituir os que foram exilados ou obrigados a fugir.

Muitas das principais lideranças da Igreja Católica, incluindo o bispo Rolando Álvarez, que ficou preso por mais de um ano, foram libertados e enviados para fora do país após negociações com o Vaticano no mês passado. De forma semelhante, em outubro, uma dezena de padres presos já haviam sido enviados ao Vaticano.

A Santa Sé não fez muitos comentários públicos sobre a situação além de um apelo ao diálogo. O porta-voz do Vaticano não respondeu a uma das perguntas da AP indagando se o clérigo de mais alto escalão da Nicarágua, o cardeal Leopoldo Brenes, está em Roma, como relataram algumas fontes nicaraguenses.

Silvio Báez, bispo auxiliar de Manágua, tem sido um dos críticos mais ferrenhos à repressão na Nicarágua, da região de Miami, onde agora vive depois que o papa pediu que ele deixasse o país para evitar ameaças violentas. No final de janeiro, ele escreveu na rede X, antes conhecida como Twitter, que estava no Vaticano para se reunir com o papa Francisco, que havia "demonstrado seu interesse e amor pela Nicarágua".

Muitos exilados argumentam que, embora a negociação para libertar padres e outros prisioneiros políticos seja um sinal de sucesso, enviá-los para o exílio não pode se tornar uma prática aceitável.

"O exílio não pode ser normalizado", diz Dolly Mora, que foi obrigada a fugir para os Estados Unidos, onde ajuda na campanha contra a prática, ao lado de outros ativistas nicaraguenses. "É tão injusto quanto a prisão. A comunidade internacional não pode dizer que está tudo bem se eles forem expulsos."

Sem protestos maiores por parte do Vaticano e de governos estrangeiros, muitos exilados temem que todos os representantes da Igreja que permaneçam na Nicarágua sejam intimidados a acomodar o governo Ortega, que atualmente tem apenas uma minoria de apoiadores do clero.

Assim, eles esperam que continuar a denunciar a repressão e a documentar cada sacerdote agredido, cada tabernáculo profanado, acabe conduzindo à justiça.

"A ditadura, o que ela quer é eliminar completamente a religião católica, porque não conseguiu fazer a Igreja se ajoelhar diante dela", diz Molina. "Mas eles não terão sucesso."

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