Legislação prevê revisão do texto após uma década de implementação; política afirmativa não deve sofrer grandes mudanças
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Há exatos dez anos, a Lei de Cotas (número 12.711) era sancionada no Brasil e buscava diminuir as desigualdades sociais, por meio do ingresso de jovens de baixa renda ao ensino superior. Passada uma década da sua implementação, a legislação prevê a revisão dessa política afirmativa, que foi historicamente discriminada por diversos setores da sociedade.
A lei determina o mínimo de 50% das vagas em universidades e instituições federais de ensino técnico para os estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas.
Diferente do que é difundido, as cotas raciais não possuem vagas extras e estão inseridas nesta mesma categoria, que especifica ainda: metade das vagas é destinada para alunos com renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo e a outra parcela a ser contemplada são pessoas pretas, pardas, indígenas e deficientes físicos – o número varia para cada Estado conforme as parcelas que esses grupos ocupam.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de Santo André e especialista em docência, Helton Fesan, explica que a revisão da Lei de Cotas não deve extinguir a política pública e sim avaliar seu impacto na sociedade e, principalmente, se o objetivo inicial foi cumprido. O especialista destaca que qualquer lei de ação afirmativa é baseada em três principais parâmetros: público determinado, objetivo a ser alcançado e período estipulado para alcançar a meta proposta.
“Qual foi o grau de inclusão desses grupos no ensino superior? Hoje, as universidades refletem o perfil demográfico nesses espaços igual na sociedade? Por mais avanços que a Lei de Cotas trouxe nos últimos anos, nós sabemos que ainda estamos muito longe da igualdade racial, por exemplo. Por isso é preciso revisar a legislação para readequar e caso necessário ampliar as ações afirmativas”, destaca Fesan.
O presidente acredita que o Congresso Nacional deve criar uma comissão para levantar os principais índices, junto as universidades, para poder analisar o cenário.
“Provavelmente esta revisão não deve ocorrer neste ano, por conta do período eleitoral e também porque demanda tempo para cruzar todos esses dados para fazer uma avaliação séria”, finaliza.
O psicólogo Edilson Claudino Bicudo, 38 anos, atua há 10 anos na sua área de formação, em Mauá, e cursou duas graduações por meio do sistema de cotas. Ele fez psicologia na UMC (Universidade de Mogi das Cruzes) e tecnologia em gestão pública na Univesp (Universidade Virtual do Estado de São Paulo).
Após terminar o ensino médio, o mauaense sonhava estudar em uma universidade pública e fez quatro anos de curso preparatório para poder passar no vestibular. Edilson é a segunda pessoa da sua família a ingressar no ensino superior – seu irmão mais velho, Edison Claudino Bicudo Júnior, formou-se em ciências sociais na USP (Universidade de São Paulo) e o inspirou a seguir o caminho acadêmico.
“As políticas de cotas são extremamente importantes para a igualdade social, racial e acadêmica. Vivenciei na UMC o início da mudança com a inserção de outros grupos sociais na instituição, e agradeço pela minha experiência ter sido positiva, porque alguns amigos cotistas relataram sofrer algum tipo de resistência por parte de professores e colegas de turma”, contou o cotista.
NA REGIÃO
Em 2021, a UFABC (Universidade Federal do ABC) tinha 15.933 alunos matriculados, sendo que 49,6% desse total, ou 7.904, eram cotistas. A reserva de vagas vai além do estabelecido pela legislação. Os dados incluem estudantes de categorias previstas na Lei de Cotas e também outros grupos como refugiados e pessoas transgênero.
Sobre a maior participação de minorias no ambiente acadêmico, Acácio Almeida, professor e ex-pró-reitor de assuntos comunitários e políticas afirmativas da UFABC, destaca a diversidade científica para além das questões sociais e econômicas.
“A política afirmativa de cotas foi capaz de ampliar o número de estudantes oriundos de escolas públicas e outras classes sociais em cursos mais elitizados, como medicina e engenharia, por exemplo. Mas não foi apenas quantitativa a mudança foi também qualitativa. As instituições tem mudado a forma de fazer ciência, de ver e tratar o conhecimento, pois as produções refletem as visões e as realidades de diferentes grupos sociais”, esclarece o docente.
Permanência dos alunos nas universidades é o novo desafio
A jovem Allie Terassi, 19 anos, mora em São Bernardo e está no segundo ano do bacharelado de ciências e humanidades na UFABC (Universidade Federal do ABC). A estudante ingressou na instituição pelo Sisu (Sistema de Seleção Unificada), nas vagas destinadas para pessoas trangêneros.
Para realizar o sonho de estudar em uma universidade pública, Allie deixou sua cidade natal, em Santa Rita do Passa Quatro, município com menos de 30 mil habitantes localizado no interior de São Paulo, e realizou o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) na Capital.
Na hora de fazer a matrícula, após receber a nota necessária, a jovem descobriu que a UFABC é uma das poucas instituições no País a reservar vagas para trans, desde 2019.
A preocupação de Allie agora não é mais a entrada na universidade e sim conseguir concluir o curso. Segundo dossiê da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil), apenas 9% das mulheres trans conseguem finalizar o ensino superior.
“Não temos nenhuma garantia que iremos conseguir nos formar, principalmente porque a maioria das situações não depende apenas da gente. Pessoas trans não conseguem emprego por conta do estigma, estudantes sofrem preconceito no ambiente acadêmico, entre outras situações que dificultam a trajetória de pessoas trans na universidade”, desabafa.
O docente da UFABC Acácio Almeida reforça o debate trazido por Allie e acrescenta que a discussão colocada hoje é sobre a permanência de diferentes grupos nas universidades. “No caso da UFABC, por exemplo, nós temos um programa de assistência estudantil, que no passado tinha um valor de R$ 8 milhões disponíveis e tivemos uma perda de 17% no orçamento. Todas as vezes que o valor fica estagnado ou quando cai, são menos recursos para atender os estudantes que dependem da assistência estudantil, ou seja, iremos servir menos refeições, ter menos dinheiro para auxílio moradia, entre outras assistências ofertadas aos alunos, como programas científicos. As universidades precisam perceber, que para além do acesso, é necessário garantir permanência, e permanência qualificada.”
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