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‘Em quatro anos é possível corrigir as perdas da pandemia’
Anderson Fattori
Do Diário do Grande ABC
04/04/2022 | 00:01
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Divulgação


Defensora assídua da escola pública, Priscila Cruz rebate falácias sobre o ensino praticado nos colégios, mas cobra competência técnica e prioridade à educação para que as oportunidades sejam para todos. Referência nacional no setor, ela acredita que em um mandato, ou seja, em quatro anos, é possível reverter todos os prejuízos decorridos da pandemia e aposta em mapeamento para dimensionar o tamanho do problema. Priscila critica a forma como o MEC (Ministério da Educação) vem sendo conduzido e cobra seriedade na apuração das denúncias de corrupção na pasta, apesar de mostrar descrença de que algo irá mudar.

Existe descrença generalizada do brasileiro na educação pública, que foi acentuada nos últimos anos. O que fazer para mudar este cenário?

Há três falsas crenças muito comuns sobre educação que ajudam a manter as coisas como estão e que, portanto, precisamos derrubar. A primeira é que a escola pública no Brasil não tem jeito. São aquelas falas que escutamos ‘escola pública na minha época era boa, hoje é um desastre e só piora’. Isso não é verdade. Em 1970, 52% das crianças e jovens de 4 a 17 anos estavam fora da escola. Ou seja, aquela escola que as pessoas se lembram como muito boa era também muito excludente. E conseguimos avançar muito de lá para cá: em 2019 eram menos de 3%  fora da escola.  A segunda é pensar que melhorar a educação pública demora demais. De 2007 para 2019, em pouco mais de dez anos, avançamos de 28% para 61% o número de crianças que atingiram o nível adequado na aprendizagem em língua portuguesa. Mapeamos experiências de sucesso nesse sentido na nossa plataforma Educação Que Dá Certo, que mostra como o Brasil tem o que aprender quando há decisão política, competência técnica e priorização, de fato, da educação. Por último, é a percepção que a elite tem de que a escola pública não é problema seu, já que seus filhos estão nas escolas particulares. Vivemos em País em que mais de 85% das matrículas estão nas escolas públicas. Se não houver educação pública de qualidade para todos, viveremos todos em um País com menos oportunidades. É por esses três motivos que acredito que haja, hoje, falta de engajamento de boa parte da sociedade com a educação. Se conseguirmos derrubar esses mitos, passaremos a colocar a educação em primeiro lugar. 

Quais são os principais desafios que as redes vão encontrar nesta retomada das aulas presenciais depois de quase dois anos de pandemia?

O primeiro desafio é mapear qual o tamanho do nosso problema. Precisamos trabalhar para combater inércia muito forte que vem de dois anos de escolas fechadas. O fechamento prolongado resultou no enfraquecimento do vínculo entre estudantes e escola, e na fragilidade da autoimagem dos alunos em relação às suas potencialidades. Esses fatores tornam a retomada mais complexa. Uma coisa é reabrir a escola depois de ano letivo normal. É muito diferente voltar depois de ensino remoto, que era o que dava para ser feito naquele momento, mas que nem de longe é suficiente para garantir a aprendizagem. Por isso, defendo a importância do acolhimento. Ele é condição necessária para que a aprendizagem aconteça. Outro desafio é promover ações objetivas que garantam a recomposição das aprendizagens. E não tem fórmula mágica, é preciso que os alunos estejam mais tempo expostos aos aprendizados e também que haja avaliação de partida, para que se saiba qual é a proficiência de cada um. Não é que as escolas precisam formar turmas homogêneas, mas turmas com dificuldades parecidas para poderem organizar processo muito intenso de recuperação. 

Aqui no Grande ABC, depois do diagnóstico realizado na retomada das aulas, alguns municípios estão apostando em reforço no contraturno para diminuir a defasagem educacional acumulada durante a pandemia. Acha que essa é uma boa alternativa? 

Com certeza. Este ano e o próximo são muito estratégicos para esta recuperação. Um dos desafios é ter um bom diagnóstico da proficiência dos alunos nos componentes curriculares. Não adianta fazer mais do mesmo. Para realmente ser efetivo e produzir os resultados necessários é preciso realizar um trabalho muito focado, feito a partir da situação concreta de cada estudante, para que nenhum fique para trás e também para que os que já avançaram possam ser desafiados e possam ir além. A desigualdade entre os estudantes já era grande, e ficou maior. Diferenciar a abordagem já era algo importante, e agora vejo que há oportunidade das redes serem estimuladas a fazer com que esta estratégia seja perene.

A senhora tem alguma relação com as cidades do Grande ABC? Conhece o trabalho desenvolvido pelas prefeituras na área da educação?

Frequentava muito a região quando era criança, e levo hoje minhas filhas para passear e aproveitar as atrações culturais. Na área da educação, historicamente os secretários de Educação do (Grande)ABC foram muito ativos em fóruns importantes, e fundamentais para debates e articulações nacionais na defesa da educação pública.

Existe na região o Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, que engloba sete municípios vizinhos. Acredita que a atuação conjunta por meio deste colegiado possa favorecer as cidades neste momento de retomada?

Sem dúvidas, sou muito favorável ao trabalho coletivo entre municípios próximos. Com desafios comuns, é fundamental que municípios possam atuar de forma conjunta e articular políticas públicas. Por exemplo, na gestão de vagas de creche e dos anos iniciais do ensino fundamental, faz sentido que haja um sistema integrado que dê conta da realidade de pais que trabalham em uma cidade e residem na cidade vizinha. Com o melhor uso dos recursos, articulando as capacidades municipais, é possível promover avanços.

Diante da escassez de recursos para a educação, qual a saída para as cidades, principalmente as menores, oferecerem programas de reforço escolar?

Uma das estratégias é justamente a colaboração entre municípios. Outra é a partir de parcerias com universidades e organizações sociais. O mais importante, no entanto, é que as secretarias desenvolvam capacidade técnica interna  para que essa ação que hoje é emergencial se transforme em prática recorrente, e seja incorporada às políticas permanentes. Recuperar a aprendizagem é algo que sempre precisa acontecer. Temos no Brasil bons exemplos de cidades com diferentes capacidades de recursos e com desafios bastante particulares que vêm obtendo muito sucesso, como Sobral (Ceará), Coruripe (Alagoas), Londrina (Paraná) e a Capital. Esses quatro exemplos estão bem mapeados pelo Todos Pela Educação na iniciativa Educação Que Dá Certo. 

De acordo com indicadores endossados pelo Todos Pela Educação, a alfabetização foi um dos níveis que mais sofreram com os efeitos da pandemia. São milhões de crianças de 6 e 7 anos que ainda não estão alfabetizadas no Brasil. Qual o caminho para as cidades lidarem com essa demanda?

Tem uma ação urgente que é fazer programas especiais para cada um dos três primeiros anos do ensino fundamental. As crianças que estão hoje no 1º, 2º ou 3º anos viveram as fases da alfabetização de formas muito particulares. Então, como falamos antes, é necessário um olhar especial para os impactos gerados em cada etapa.  Essas crianças tiveram menos oportunidades para adquirir habilidades específicas e precisam de um programa robusto para anular os efeitos da pandemia na alfabetização. 

Como avalia as recentes declarações do então ministro da Educação, Milton Ribeiro, dizendo que, a pedido do presidente Jair Bolsonaro (PL), envia verbas do MEC aos municípios de acordo com direcionamento dos pastores Gilmar Santos e Arilton Moura?

As denúncias que levaram à queda do ministro são muito graves e precisam ser apuradas até o fim, com a responsabilização de todos os eventuais envolvidos. Mas os problemas no MEC não são recentes. Já são mais de três anos que deixaram evidente que a prioridade do MEC neste governo está longe de ser a formulação e a implementação de políticas públicas para melhorar a qualidade da educação. A simples troca de ministros está longe de resolver o problema. Ao contrário. A mudança não pode simplesmente ser uma saída para evitar mais desgaste ao presidente em um ano eleitoral e servir apenas para esfriar o tema e as investigações. Sem uma gestão qualificada no MEC até aqui, parece pouco plausível que possamos ter um quadro diferente após a saída do Milton Ribeiro.

De acordo com dados do Saresp, alunos do ensino médio da rede estadual de São Paulo apresentaram em 2021 o pior desempenho em matemática dos últimos 11 anos. A avaliação mostrou que o aluno do 5º ano está com a mesma proficiência esperada de um estudante do 2º ano. Em quanto tempo acredita que a rede conseguirá reverter essa defasagem?

Não há uma resposta precisa para esta pergunta. Vai depender muito da prioridade que será dada à educação e das políticas que forem implementadas. O que eu posso afirmar é que em um mandato é possível corrigir todos os prejuízos decorridos da pandemia. É possível, mas se isso vai acontecer ou não depende muito da prioridade dada à educação.

O ensino remoto deixou ainda mais claro o abismo que existe entre o ensino público e o privado, além de ter ampliado a desigualdade. Como as redes podem e devem atuar para diminuir essa diferença nesta retomada?

Não faltam evidências a respeito das políticas educacionais necessárias para elevar o patamar da qualidade educacional básica no País. Temos tanto evidências produzidas a partir de pesquisas como boas experiências que mostram de forma empírica que é possível, em pouco tempo, elevar o patamar de qualidade de uma forma bastante substantiva. A questão é, de novo, a prioridade que é dada. Para colocar todo esse conjunto de políticas em prática, os prefeitos e governadores precisam ser gestores públicos altamente comprometidos com uma gestão voltada para resultados na educação. Isso exige um compromisso pessoal e diário dos gestores públicos. 




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