Entrevista da Semana Titulo Entrevista da semana - Padre Júlio Lancelotti
‘A miséria se torna uma sentença de morte’
Thaina Lana
Do Diário do Grande ABC
21/03/2022 | 00:02
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André Henriques/ DGABC


O padre Júlio Lancellotti, conhecido por seu trabalho com a população em situação de rua, atua como pároco da paróquia de São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, e há 40 anos é responsável pela da Pastoral do Povo de Rua em São Paulo, onde exerce trabalho social e humanitário.

O líder religioso é contrário a ‘arquitetura antipobres’, projetada em diversas cidades do País para afastar e impedir a presença de pessoas em extrema vulnerabilidade, e ficou conhecido nacionalmente após tentar derrubar a marretadas as pedras instaladas debaixo de um viaduto na Zona Leste da Capital. Suas ações são constantemente criticadas por políticos de direita nas redes sociais.

Qual a sua relação com o Grande ABC?
Conheci a Diocese de Santo André quando o bispo Cláudio Hummes estava à frente (entre 1975 e 1998), justamente no período das greves dos trabalhadores. Além disso, também tenho familiares em São Bernardo; uma tia avó, que já faleceu, e um irmão da minha mãe. Tirando essa relação pessoal, todos conhecem as histórias das cidades do Grande ABC.

Em dezembro do ano passado, após denúncia sua nas redes sociais, a Paróquia Sant’ Anna, de Ribeirão Pires, retirou as pedras que tinha colocado na fachada e que afastavam pessoas em situação de rua de dormirem no local. Um caso semelhante aconteceu em fevereiro de 2021, quando o sr. deu marretadas nas pedras debaixo de um viaduto na Zona Leste da Capital. Esses são alguns exemplos de ‘arquitetura antipobres’?
Sim. Essas intervenções hostis na arquitetura não são privilégios de uma cidade ou de outra, estão presentes em diversos locais, como São Paulo, São Bernardo, São Caetano, Florianópolis, entre outros. A medida em que cresce a população em situação de rua, cresce também a rejeição a esse povo. O sistema que nós vivemos, ele não digere, ele produz a miséria. Ao mesmo tempo que ele produz a miséria, culturalmente se produz a intolerância.

A crise sanitária da Covid aumentou o número de pessoas em situação de rua?
Os sinais de pobreza nas cidades estão extremamente acentuados por causa da pandemia. A quantidade de pessoas que não têm acesso à saúde, proteção social e a moradia está cada vez maior. É importante ressaltar também a migração natural e forçada desse povo. Se você olhar o Centro de São Bernardo é possível perceber o aumento dessa população, assim como em outras cidades do Grande ABC. Isso ocorreu por conta da crise sanitária e também pela migração dessa população. A fronteira entre as sete cidades da região com a Capital, por exemplo, é muito tênue. A população em situação de rua circula pelos lugares, mas também é forçada a se retirar de alguns espaços.

O sr. acredita que o espírito solidário das pessoas aumentou durante a pandemia?
Acredito que a pandemia simplesmente potencializou as ações dos indivíduos, ou seja, quem já era solidário ficou ainda mais solidário, mas quem era individualista ficou ainda mais.

A pobreza também aumentou durante esse período?
A crise política e econômica começou com o golpe militar que a presidente Dilma sofreu, em 2016 . A reforma trabalhista foi feita quando? Durante o governo (de Michel) Temer! Então acredito que tem essa linha do tempo na história do País e a pandemia apenas agravou a situação. Mas claro que a crise sanitária agravou, sim, a miséria, as desigualdades sociais, as doenças mentais, os laços familiares, entre outros pontos.

Como foi enfrentar a pandemia ao lado das pessoas em situação de rua?
A pandemia colocou as pessoas em situação de rua em uma evidência muito grande, porque parou tudo, fechou tudo, e quem fazia parte da paisagem ficou sendo o único ator do palco. Eles ficaram evidentes, e isso gerou gestos de solidariedade e também gerou indiferença. Tudo aquilo que a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomendou não era aplicado para aquela parcela da população. ‘Fique em casa!’ Diz isso para quem dorme na calçada. ‘Higienize as mãos’. E quem não tem nem água potável para beber? Conviver com eles durante a pandemia foi uma aprendizagem exigente, difícil e necessária.

Em uma das suas entrevistas o sr. disse a seguinte frase: ‘Em vez de lutar contra pobreza lutam contra o pobre’. Poderia explicar melhor sobre esse pensamento?
Um exemplo claro são as campanhas contra esmola que algumas prefeituras estão promovendo. Achei uma frase no livro de Provérbios, capítulo quatro, versículo oito, que diz o seguinte: “Que sua esmola seja proporcional aos bens que você possui”. Não dar esmola é criminalizar o pobre ao invés de lutar contra pobreza. Por quê? Ninguém está na rua por causa da esmola, a esmola é uma consequência de quem está na rua. A pessoa está na rua e precisa pedir esmola, mas ela não vai para rua para pedir esmola porque é muito rentável. Se fosse tão rentável assim, não existiriam vereadores, né? Os vereadores iriam pedir esmola nas ruas e ganhariam mais do que eles ganham roubando do jeito que roubam. Então, para que ter vereador? Não é melhor pedir esmola?

Por que o sr. acha que as prefeituras promovem esse tipo de campanha?
Porque não sabem o que fazer. Recentemente entrou na Assembleia Legislativa de São Paulo um projeto contra a doação de esmola. Isso é uma bobagem. A esmola é de foro íntimo, quem decide se deve ou não dar esmola sou eu ou você. O Estado não pode tutelar sua consciência, não é o Estado que determina se você da esmola ou não. Se as pessoas são atendidas com renda básica, elas não vão precisar pedir esmola. Ficar em pé nesse Sol, no farol, ouvindo xingamentos e deboches para dizer que conseguiu algum trocado, será que vale realmente a pena? Essas campanhas moralistas alegam que os moradores em situação de rua vão comprar álcool, mas os que trabalham e recebem não compram álcool também? O único álcool condenado é o comprado com a esmola? O comprado com a propina não tem problema? É como acreditar que só se usa droga nas ruas, que nos condomínios de luxo do Grande ABC, por exemplo, ninguém usa droga.

É uma maneira de criminalizar a pobreza?
Toda a nossa cultura é de criminalização da pobreza. O pobre é sempre culpado de tudo, é o viciado, não trabalha, é o vagabundo, gasta mal seu dinheiro. O Brasil continua um país escravocrata.

Em agosto do ano passado, a deputada estadual Janaina Paschoal (União Brasil) fez publicações nas redes sociais criticando o sr. e a Pastoral do Povo da Rua de São Paulo por distribuir comida às pessoas em situação de rua na Cracolândia. O sr. acredita que o pensamento dela reflete a opinião de uma significativa parcela da população?
Ela é a deputada estadual mais votada da história do Brasil. com cerca de 2 dois milhões de votos (2.060.786). Ela é um fenômeno eleitoral, representa muita gente. Quantos deputados no Brasil receberam dois milhões de votos? Só ela!

Por que a doação de alimentos incomoda tanto as pessoas que pensam igual a ela?

Porque elas pensam assim. Alguns pensam que são vagabundos, que você está alimentando vagabundo. Só se deve alimentar quem trabalha, quem não trabalha deve morrer de fome, ou deve sofrer com a fome para assim procurar trabalho. É a educação pela dor. É proibido dar esmola, é proibido dar comida, não tem nenhuma proteção social. Nós estamos jogando essa multidão de famintos, de pessoas descartadas, para uma situação de desespero. A miséria se torna uma sentença de morte.

O sr. e o deputado estadual Artur do Val (sem partido) possuem histórico de desavenças ao longo dos anos. Por qual motivo o sr. acredita que ele se opõe tanto ao seu trabalho?
Nunca tive nada contra ele, não faço nenhuma declaração contra ele, não me regozijo com nada que acontece com ele. É uma liberdade que ele tem, ele é o segundo deputado mais votado do Estado de São Paulo, ele tem legitimidade, foi eleito democraticamente, está exercendo o papel dele.

O sr. tem ideia do porquê o deputado se opõe tanto ao seu trabalho?
É um direto que ele tem, não posso obrigá-lo a pensar diferente do que ele pensa, até porque ele representa um grupo que também pensa assim. Para mim uma coisa é clara, não uso contra os que me atingem as mesmas armas que eles usam contra mim, isso tenho como princípio. E não me alegro com o sofrimento de nenhum deles (referindo-se a Artur do Val e Janaina Paschoal).

O que o sr. pensa sobre o slogan do presidente Jair Bolsonaro (PL), ‘Brasil Acima de Tudo, Deus Acima de Todos’?
Dizer ‘Deus acima de tudo’ é protofascismo, não é bíblico e não é cristão. Os que são católicos e vão a celebração e ouvem o padre falar: ‘O senhor esteja convosco’, e o que o povo responde? ‘Ele está no meio de nós’, a gente fala isso todos os dias e depois repete que Deus está acima? Afinal, Ele está acima ou no meio? Biblicamente, Ele está no meio. Se você olhar o Evangelho de João, toda vez que Jesus se manifesta, ele está no meio, e, em toda tradição, ele desceu para ficar no meio do povo. Então, dizer que ele está acima, não é bíblico, não é cristão e não se refere a nenhuma prática cristã. ‘Deus acima de tudo’ é tudo, menos teológico, pastoral, bíblico e cristão; é mais protofascista.


RAIO-X

Nome: Júlio Renato Lancellotti

Estado civil: Solteiro

Idade: 73 anos

Local de nascimento: São Paulo (Capital)

Formação: Pedagogia com especialização em orientação educacional e teologia 

Hobby: Ler

Local predileto: Livraria

Livro que recomenda: A loucura de Deus

Artista que marcou sua vida: Dom Frei Paulo Evaristo Arns 

Profissão: Pároco

Onde trabalha: Paróquia de São Miguel Arcanjo




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