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Abraham Kasinsky: usina de sonhos
Anderson Amaral
Do Diário do Grande ABC
02/12/2006 | 17:13
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Empreendedor, visionário, trabalhador. Muitos são os adjetivos que podem ser usados para definir o empresário Abraham Kasinsky. Mas, para a ex-secretária do empresário, Maria Lúcia Doretto, com quem conviveu durante quase 30 anos, o seu Abrão – como ele é carinhosamente chamado por ela – é uma usina de sonhos.

Justa definição. Dono de uma bem-sucedida loja de autopeças, Kasinsky ousou, aos 32 anos, construir a Cofap, que mais tarde se tornaria a maior fábrica de autopeças da América Latina. Com a marca, que até hoje o fascina pela simplicidade, Kasinsky criou um sinônimo para amortecedor, trocou o nome de uma raça de cachorros e inventou a obsolescência planejada, seguindo os ensinamentos do pai, que queria vender “peças que gastassem”.

A ousadia de Kasinsky era tanta que um dos anúncios concebidos juntamente com o publicitário Washington Olivetto, ainda nos anos 80, trazia uma camisinha como exemplo de produto que não podia ser reutilizado, a exemplo dos amortecedores – campanha esta que, ele garante, reduziu o consumo de amortecedores recondicionados. Corintiano fervoroso, Kasinsky também patrocinou a camisa de seu time de coração na histórica campanha do bicampeonato paulista de 1983.

Em 1997, após anos de conflitos familiares motivados pela sua sucessão, Kasinsky desfez-se da Cofap. Mas ele não ficou muito tempo longe do meio empresarial. Dois anos depois, criou a fábrica de motocicletas que carrega o seu nome. Presente nos momentos mais importantes da vida do empresário, Maria Lúcia narra-os no livro “Kasinsky – Um Gênio Movido a Paixão” – sua obra de estréia – com esmero quase cinematográfico.

Aos 89 anos, Kasinsky segue atuante à frente de sua fábrica de motocicletas. E, como relatou em entrevista concedida juntamente com Maria Lúcia ao Diário, ainda tem sonhos a realizar. Que ninguém duvide deles.

DIÁRIO – Como surgiu, Maria Lúcia, a idéia do livro?

MARIA LÚCIA DORETTO – A criação do primeiro capítulo antecedeu a idéia de escrever o livro. Tudo aconteceu no trajeto entre a fábrica da Cofap e minha casa. Naquele momento, o capítulo se desenhou exatamente como está escrito. Eu assisti à chegada dos representantes das empresas internacionais que comprariam a Cofap. O impacto causado por aquela cena gerou um sentimento de emoção muito forte. Nascia ali uma necessidade de colocar aqueles acontecimentos no papel. Além disso, tive a percepção de que, naquele momento, se fechava um ciclo da indústria nacional de autopeças.

DIÁRIO – Qual foi o seu sentimento ao ler o livro, sr. Kasinsky?

ABRAHAM KASINSKY – Senti-me muito realizado, afinal o livro é a complementação de uma vida. É a interpretação de quem escreve sobre o biografado. Nós trabalhamos juntos por quase 30 anos. Então, acabamos assimilando um ao outro. Sem querer, ela conviveu comigo dia e noite.

MARIA LÚCIA – O sr. Abrão não queria fazer o livro porque ele achava que a vida dele não valia um livro. A idéia de fazer o livro foi minha, é um projeto só meu. Quando fui consultá-lo, a primeira reação dele foi dizer “não”, porque ele não queria fazer um livro, colocá-lo na estante de casa e, quando aparecesse algum amigo, entregasse o livro para que, depois, o amigo o colocasse em outra estante e não o lesse. Ele também temia que as pessoas achassem que o livro era uma forma de dizer: “Eu sou grande, eu sou muito bom”.

DIÁRIO – O livro começa com a venda da Cofap à Magneti Marelli, que se concretiza três dias antes de o sr. completar 80 anos. Como foi aquele momento?

KASINSKY – Péssimo, péssimo. Acho que o livro começa assim, com a história de uma morte, a morte da Cofap. É como um filho, que você dá à luz e, depois que fica adulto, diz: “Não sou mais seu pai”.

DIÁRIO – Como foram os dias que se seguiram à venda?

KASINSKY – Terríveis. Eu sempre tive medo de vender a empresa e ficar sem ter o que fazer, com a mão abanando. Para quem estava acostumado à correria de uma grande companhia, como eu, era uma tragédia.

DIÁRIO – Mas hoje, à frente da empresa que leva seu nome, o sr. ainda tem objetivos?

KASINSKY – Tenho. O primeiro deles é não abandonar a marca, que é uma forma de me manter vivo. Também quero fazer um veículo pequeno, de preço acessível. O veículo de três rodas que fizemos é o primeiro passo para a concretização desse objetivo. Já faço motos, mas quero um automóvel.

DIÁRIO – O nome “Cofap” teve grande peso no sucesso da empresa, não é mesmo?

KASINSKY – Sim. O nome é bom porque é curto, não quer dizer nada e não ofende ninguém. Fácil de ouvir, fácil de pronunciar em qualquer idioma. Você vai à Turquia e o nome continua sendo Cofap. Não tem uma nova interpretação. O nome me fascina porque é curto e simples. Acertei na mosca.

DIÁRIO – O sr. poderia contar como foi o começo de sua trajetória empresarial?

KASINSKY – Essa foto (ele aponta para um quadro na parede) é de 1928, na época da inauguração da rodovia que ligava São Paulo ao Rio. Tínhamos uma loja (de autopeças), a Três Leões, no começo da estrada, na avenida Celso Garcia. E tinha uma bomba de gasolina na calçada, porque meu pai queria vender gasolina – e queria vender mais barato. Como a mangueira era comprida, ele percebeu que seguramente um quarto de litro de cada cliente ficava na mangueira. Aí ele fez a conta e começou a vender a gasolina mais barata, compensando o que ficava na mangueira. Eu achava estranho porque vinha cliente de Higienópolis, um bairro chique, para comprar gasolina no Brás... Felizmente, nunca ninguém veio falar comigo, reclamar da diferença.

DIÁRIO – O que seu pai vendia na loja?

KASINSKY – Meu pai dizia que não queria vender acessórios. Ele queria vender peças que gastassem. Porque, se gasta, o cliente vem trocar. Pneus, gasolina... E o amortecedor era uma delas. Naquela época, as estradas eram muito ruins – se bem que os carros também não andavam nada.

DIÁRIO – E como surgiu a idéia de construir a Cofap?

KASINSKY – Naquela época, só existiam peças importadas. Aí, vi meu irmão atrás de um display de juntas Stevaux. Foi aí que eu me dei conta de que esse era o futuro: produzir autopeças no Brasil.

DIÁRIO – Naquele momento, o sr. imaginou que a Cofap se transformaria, anos mais tarde, na maior fábrica de autopeças do Brasil?

KASINSKY – Não. E, se eu soubesse disso, nem a teria construído. A Cofap foi um acidente, mas com um nome muito feliz.

DIÁRIO – Como ocorreu a venda da Cofap? Sabe-se que ela foi vendida por causa de dissensões familiares...

MARIA LÚCIA – É, elas foram os detonadores do processo. A Cofap não foi vendida por falta de eficiência, mas por conflitos familiares que envolveram os grandes acionistas. Foi entregue a compradores estrangeiros uma empresa “world class supplier” (do inglês, fornecedora de classe mundial), líder no mercado e saudável do ponto de vista financeiro.

DIÁRIO – O sr. guarda alguma mágoa de seus filhos ou de seus sobrinhos em função da crise familiar que culminou na venda da empresa?

KASINSKY – É claro que foi um momento muito triste para mim, afinal, dei a minha vida àquela empresa. Meus sobrinhos não quiseram enfrentar minha luta. Felizmente, todos estão bem, têm uma boa vida. Agora, admito que sou briguento, encrenqueiro. Isso atrapalhou a relação. Mas ficou tudo no passado.

DIÁRIO – O sr. tornou-se comunista por inspiração de Luís Carlos Prestes. Hoje, o Brasil tem um operário como presidente. Qual é sua avaliação do governo Lula?

KASINSKY – Lula é um homem bastante inteligente.

DIÁRIO – Como era o relacionamento de vocês?

KASINSKY – Hoje, somos amigos, mas, naquela época, tinha raiva dele. Lembro-me de que, certa vez, Lula falava aos trabalhadores de cima do caminhão e eu o ouvia do chão. Trocamos muitas ofensas. Eu xinguei a mãe dele, ele xingou a minha. Depois, ele desceu do caminhão e disse que queria falar comigo no escritório. Lula falou que pararia a fábrica de qualquer jeito, porque aquela era a maior fábrica de autopeças do país. Não falava mal do produto. Falava mal de mim.

DIÁRIO – A Maria Lúcia conta esse episódio no livro. Ela conta também que, no dia seguinte, o sr. deu uma entrevista ao Diário em que previu a desindustrialização do Grande ABC. Para o sr., os sindicatos são os responsáveis por esse processo?

KASINSKY – Os empresários são inteligentes e têm medo. Eles querem ganhar dinheiro, desenvolver a região onde atuam, querem ficar ricos. O que os sindicatos fizeram foi dar um tiro no próprio pé.

DIÁRIO – Se decidisse construir uma segunda fábrica da Kasinsky, o sr. consideraria a possibilidade de construí-la no Grande ABC?

KASINSKY – (pára para pensar) Vou te dizer uma coisa: você se casa, trai sua mulher, arruma outra, mas nunca esquece a primeira. Ela pode até não prestar, mas, se ela fizer um sinal com as mãos, você volta rapidinho.

DIÁRIO – Sem ter a pretensão de desconstruir o mito, quais são os principais defeitos do sr. Kasinsky?

MARIA LÚCIA – O sr. Abrão é uma pessoa muito teimosa e vaidosa. Porém, não é vaidoso das roupas que ele usa, da casa maravilhosa que tem. Ele é vaidoso de suas realizações. O sr. Abrão não suportava que ninguém falasse mal da Cofap. Quem fizesse isso se transformava em um inimigo.

DIÁRIO – Gostaria que lembrasse de um momento em que o sr. contrariou a opinião de outros executivos, levou sua idéia adiante e, tempos depois, essa decisão se mostrou acertada.

KASINSKY – Um exemplo é o projeto da fábrica de Portugal. A diretoria inteira era contrária. Era 1990, o começo do processo de globalização. Por isso, eu precisava ter um pé na Europa. Os outros não perceberam que a fábrica seria uma porta-de-entrada para o mundo.

DIÁRIO – Qual é o grande mérito do sr. Kasinsky que possa servir de exemplo para outros empreendedores?

MARIA LÚCIA – Sua visão e seu papel como gerador de riquezas e promotor do bem-estar social. No auge, a Cofap chegou a ter 22 mil trabalhadores, de cuja qualidade de vida era uma preocupação constante do sr. Kasinsky – prova disso é o colégio dedicado aos filhos dos trabalhadores que ele construiu. Também criou a Fundação Abraham Kasinsky, voltada para o setor social. Enfim, eu o vejo como uma fusão de sonhador, líder visionário e empreendedor.

DIÁRIO – É mais fácil empreender hoje ou no tempo em que o sr. criou a Cofap?

KASINSKY – Fui empreendedor porque vivi uma época de ouro para aqueles que buscavam novas oportunidades e para quem tinha coragem para correr atrás delas. Hoje, acho que não é possível criar uma nova Cofap, pelo menos nos moldes em que foi feita. Ela foi construída em um momento em que todos os fatores conspiraram favoravelmente. Mas sou um homem otimista. Acredito que outros projetos do mesmo porte podem surgir em outras áreas.

DIÁRIO – Qual foi a importância do sr. Kasinsky para o setor de autopeças?

MARIA LÚCIA – Ele conseguiu no governo muitas leis que beneficiaram o setor. As montadoras tinham muita força, pois trouxeram muitos investimentos dos países de origem. Mas as autopeças, não. Eram coadjuvantes naquele espetáculo da criação da indústria automotiva. E o sr. Abrão trabalhou muito para que os benefícios concedidos às montadoras fossem também estendidos às autopeças. Ele usava a força da Cofap para conseguir vantagens para as empresas menores.

DIÁRIO – O trabalho ainda lhe dá prazer, sr. Kasinsky?

KASINSKY – Claro. Eu me sinto muito bem aqui. Fui eu que realizei isso, é um filho para mim. Só não dá mais prazer do que a Cofap.

DIÁRIO – O sr. tem saudade do tempo em que comandava a Cofap?

KASINSKY – Não tenha dúvida. A Cofap foi um marco no Brasil, e tenho muito orgulho de tê-la construído.

DIÁRIO – O sr. nunca foi consultado pela Magneti Marelli sobre algum aspecto da administração da empresa?

KASINSKY – Não. Também nunca mais voltei à fábrica. É uma pena, mas é compreensível. Afinal, não seria possível vender a rapadura e, depois, pedir um pedaço dela, não é mesmo?



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