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Zé Celso adapta 'Os Sertões' para o teatro
Mauro Fernando
Do Diário do Grande ABC
01/12/2002 | 17:45
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Nesta segunda-feira completa-se o centenário do lançamento da primeira edição de Os Sertões, de Euclides da Cunha (1866-1909), um dos maiores clássicos da língua portuguesa. Não foi por acaso, portanto, que o diretor José Celso Martinez Corrêa, do Teatro Oficina Uzyna Uzona, decidiu fazer nesta segunda a pré-estréia da sua adaptação teatral para o livro.

Os Sertões relata a saga de Antônio Conselheiro (1830-1897), misto de líder religioso e político – e da população que se aglutinou em torno dele – na construção e na defesa de Canudos, cidade encravada no sertão baiano. Canudos foi arrasada em 1897 pela quarta expedição enviada pelo Exército - as anteriores foram rechaçadas pelos sertanejos.

Zé Celso coloca nesta segunda em cartaz para convidados - o público poderá assistir ao espetáculo a partir de sábado - no Teatro Oficina, em São Paulo, A Terra, primeiro segmento de sua adaptação. O Homem deve estrear depois do Carnaval e A Luta, que ainda pode ser dividida em partes, no segundo semestre de 2003. Assim, o diretor obedece à mesma divisão que Cunha deu a sua obra. O Oficina se debruça sobre o tema há dois anos.

"Canudos é o primeiro movimento social que não se entregou. Com o massacre, a República se consolidou. O Exército se reuniu na Bahia para apontar canhões para o próprio Brasil. A República foi construída com essa mancha, esse timbre sangrento. Canudos é um tabu para o Exército", diz Zé Celso.

A peça faz claras referências à exclusão social. "Canudos foi a primeira luta social brasileira forte. Na época, o capitalismo, a belle époque, o positivismo viviam no apogeu. Canudos foi um fenômeno: a segunda cidade da Bahia, tinha 25 mil habitantes que não admitiam a exclusão. Com a seca, o povo encontrava lá uma maneira de viver. Não eram seres sociais em estado de conformismo. Não aceitaram a exclusão, organizaram-se e foram massacrados pela incompreensão da República", diz Zé Celso.

Além disso, o Oficina vê em Canudos o mito da sociedade igualitária, e encontra paralelos entre a cidade e o grupo, fundado em 1958. "Todos em Canudos participavam do poder, a origem disso está na prática comunitária sertaneja. Houve uma luta não só para resistir, permanecer, mas também para avançar. Os Sertões sempre inspirou o Oficina", afirma o diretor.

"Enquanto no fim do século XIX o Exército cercava e destruía Canudos, no início do século XXI encenamos Os Sertões sob a ameaça de um massacre da especulação imobiliária", diz Zé Celso. Ele se refere ao shopping que o Grupo Silvio Santos pretende construir no entorno do teatro, espaço tombado pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo).

O shopping integra um projeto maior, de transformação do bairro do Bixiga. O diretor faz um apelo ao congraçamento social: "O bairro, que é de várias classes sociais, tem de ser revitalizado. Mas não pode tornar-se um gueto da burguesia ou do povo". "Querem fazer um Bixiga para turistas. Isso pode ser feito, desde que não se excluam os moradores do bairro", afirma o ator Marcelo Drummond.

Na cenografia da peça (de Cristiane Cortílio), muita terra. O espaço, concebido para um fazer teatral longínquo do tradicional, passou por modificações. "A terra vai invadir o Oficina. Colocamos uma terra parecida à do sertão, com mica e rochas que dão ao solo textura, cor e vibração semelhantes ao de Canudos", afirma o diretor. "As estruturas do teatro (onde o público se acomoda) ficarão de um branco reluzente, que remete à luz sertaneja de Vidas Secas (de Graciliano Ramos)."

A figura mítica do Conselheiro entra em cena na segunda parte do tríptico engendrado pelo Oficina. Na primeira, surge como Antônio Vicente Mendes Maciel (seu nome de batismo), interpretado por Fransérgio Araújo. Antes, portanto, de transformar-se no Conselheiro. A adaptação de Zé Celso também põe em cena Euclides da Cunha, vivido por Drummond. "O livro tem alguns pontos em primeira pessoa. Poucas coisas, mas fortes", diz Drummond.

Há uma cena em que Antônio Vicente encontra Euclides da Cunha. "É delírio", afirma Drummond. "Euclides vai se despedaçando ao longo do livro. Descobriu a importância do Conselheiro e percebeu que não se tratava de um doido. Enquanto (Karl) Marx escrevia a teoria, Conselheiro fazia na prática. Em Canudos tudo era comum, não se via alguém passando fome enquanto outro tinha muito. Havia um equilíbrio. Se uma família perdia tudo, outras se cotizavam."

Personagens como bichos, pedras, terra povoam a montagem. "É uma loucura. Em A Terra, Euclides faz uma descrição geológica impressionante. Transformamos isso em música. A idéia não é explicar, e sim fazer poesia", afirma Drummond. "É uma peça-coral, não há figuração. É uma peça musical, dançante. O público fará teatro conosco", diz Zé Celso. Claro que não se trata de um musical do estilo da Broadway. "Nossa influência é a música popular brasileira. A peça tem muita percussão", afirma Drummond.

"Os Sertões não é um livro maniqueísta, não expõe eixos do bem e do mal. Mostra toda a complexidade que envolve Canudos", diz Zé Celso. Ele pretende encenar no próximo ano sua adaptação completa de Os Sertões na região em que ficava Canudos. "A encenação em Canudos pode ser um marco, a sagração de um lugar já com muito poder magnético. Os canudenses não se entregaram", afirma.

Os Sertões – Teatro. Adaptação de José Celso Martinez Corrêa para o livro de Euclides de Cunha. Direção de José Celso Martinez Corrêa. Com o Teatro Oficina Uzyna Uzona. Sáb. e dom., às 18h. No Teatro Oficina - r. Jaceguai, 520, São Paulo. Tel.: 3104-0678. Ingr.: R$ 30. Até o dia 22. (Sessão especial no dia 23, às 14h30, com ingressos a R$ 10.)




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