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Livro conta presença chinesa no Brasil
Do Diário do Grande ABC
25/12/1999 | 19:26
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Com a devoluçao do território de Macau à China, na segunda-feira, o Império Português chegou ao fim. A primeira colônia européia na Asia foi também a última a se libertar, 442 anos depois de conquistada. Os 42 quilômetros quadrados de Macau, área equivalente a 12 Parques do Ibirapuera, na Zona Sul de Sao Paulo, nao representam muito quando se pensa na totalidade dos domínios ultramarinos portugueses do século 16. Macau foi apenas a porçao do extremo oriente desse Império que, no auge, teve de prover governadores para a India e o Brasil, além das terras no continente africano.

A força dos produtos e da cultura chinesa no Brasil colonial, no entanto, foi bem maior do que a imaginada. Representaçoes de Cristo com olhos puxados, detalhes de pinturas chinesas em igrejas de Minas Gerais, leques comemorativos do desembarque da princesa Leopoldina no Rio, além de milhares de porcelanas, sedas, objetos decorativos e uma herança arquitetônica significativa, sao alguns indícios dessa presença. Isso tudo foi sistematizado, após uma pesquisa de 20 anos, no livro "A China no Brasil" (Editora da Universidade Estadual de Campinas, 288 págs, R$ 41,60), do historiador e crítico de arte José Roberto Teixeira Leite.

"Mais do que falar sobre a cultura chinesa, o livro trata dos usos e costumes que foram adotados no país; por exemplo, os fogos de artifício e a medicina", explica o autor. Traz também informaçoes surpreendentes, como o projeto de substituir a mao-de-obra escrava africana pela "semi-escrava" asiática, em meados do século 19, quando as pressoes da Inglaterra pelo fim do escravagismo eram quase insuportáveis. "Propunha-se que os chineses viessem trabalhar por um período de oito anos, ao fim dos quais eles voltariam ao seu país; ocorre que os salários eram tao baixos, que, dificilmente, eles tinham oportunidade de retornar à sua terra, devido às altas dívidas contraídas aqui."

Essa nao seria a primeira vez que chineses viriam ao País para trabalhar. "Os arquivos públicos de Minas Gerais mostram a existência de escravos chineses, que, em geral, trabalhavam como secretários dos portugueses, no período da extraçao de ouro", relata Leite. Nao se sabe quantos estiveram na extraçao, mas os semi-escravos do século 19 devem ter chegado a pelo menos quatro mil.

Muitos chineses se suicidaram no Brasil por causa da marginalizaçao que a China impunha àqueles que deixavam as terras. "O chinês que deixa seu país perde o direito de enterrar seus pais, perde sua tradiçao; ao se suicidar, ele criava um problema moral para seu patrao", explica. "O projeto de substituiçao de mao-de-obra abortou devido a uma grande reaçao, principalmente dos positivistas, que logo começaram a dizer que praticamente nao havia diferença entre a escravidao africana e esse sistema de trabalho."

De todos os produtos chineses importados no Brasil colonial, a porcelana foi a mais difundida. "Chegaram 10 milhoes de peças até 1850; eram tao baratas, que era comum usar pratos somente uma vez e, imediatamente, jogar fora", comenta o pesquisador.

Estudiosos dividem-se quanto a definir a data em que surgiram as primeiras porcelanas na China. Arqueólogos chineses situam a invençao no século 16 a.C., enquanto pesquisadores ocidentais acreditam nao ter sido antes da dinastia Tang (618-906 d.C.). A chegada desses produtos ao Ocidente também ocorreu em período indefinido, mas se deve lembrar que Marco Polo fazia referências a eles no século 13.

O comércio intracolonial - as idas e vindas de embarcaçoes lotadas de produtos entre China e Brasil - era ilegal. Lisboa era o grande empório de todos os produtos chineses e era para lá que eles deviam seguir. "As coisas, porém, nao funcionavam exatamente como a lei mandava." Os produtos vinham clandestinamente até o Brasil e Salvador tornou-se um grande centro de compras. "Muitas vezes, as melhores mercadorias ficavam por aqui", comenta o historiador. "Isso nao é comprovado porque os documentos sobre as embarcaçoes só registram os nomes dos comandantes, mas acredito que grande parte das tripulaçoes da carreira da India era composta por chineses; também sabemos que muitos soldados da Bahia e de Pernambuco foram mandados para o Oriente."

Além disso, a Bahia teve, no início do século 19, uma companhia particular que fazia uma trajetória até Goa, a capital do mundo português na Asia, que administrava Macau.

É comum encontrar em igrejas de Minas Gerais painéis com características chinesas, além de esculturas de representaçoes de santos, ou até mesmo de Cristo, com feiçoes típicas dos asiáticos. "Muitos jesuítas estiveram na China antes de vir para cá e incorporaram traços do modo de ser chinês", explica Leite. "Eles levaram um susto quando encontraram, nos templos daquele país tao distante, altares com uma figura muito semelhante à Virgem Maria, a deusa da meditaçao budista, chamada Guanyin." Muitos religiosos acharam que Guanyin era mesmo a Virgem Maria e que, portanto, existia um parentesco direto entre o catolicismo e o budismo. "É um fenômeno de aculturaçao: eles trouxeram aqueles signos para o Brasil."

Em 1808, com a abertura dos portos às embarcaçoes européias e norte-americanas, o Brasil deu início à ocidentalizaçao do comércio. Nada impediu, porém, que os portos brasileiros ainda estivessem presentes no imaginário oriental. Um panorama composto de quatro quadros retrata a cidade do Rio no século 19. Foi feito pelo trade painter Sunqua, um chinês que trabalhou entre 1830 e 1870 em Cantao e Macau, mas que algumas fontes dizem ter estado no Brasil quando jovem. Os trade painters, chineses que trabalhavam em técnica e no estilo ocidental para clientes europeus ou norte-americanos, foram a prova de que Oriente e Ocidente ainda tinham muito o que trocar culturalmente.




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