Chega às lojas a primeira biografia detalhada do escritor José de Alencar (432 páginas, R$ 45, Editora Globo). O autor, jornalista Lira Neto, nos mostra um outro Alencar, muito distante da figura do adocicado romancista de Iracema e de O Guarani. Em vez de gastar páginas e páginas sobre a "virgem dos lábios de mel", o autor fez uma pesquisa detalhada para nos revelar, século e meio depois, a verdadeira imagem do escritor cearense - um homem público contraditório e incansável na defesa de suas idéias.
Tanto que ao título O Inimigo do Rei, Lira Neto acrescentou o subtítulo "Uma biografia de José de Alencar ou a mirabolante aventura de um romancista que colecionava desafetos, azucrinava D. Pedro II e acabou inventando o Brasil".
Definitivamente, Alencar não amaciava. No campo literário, desancou Gonçalves de Magalhães, o poeta protegido do rei. E no político, como deputado, fez oposição sistemática a Dom Pedro II. Não perdia oportunidades para ridicularizar o imperador. À maneira do melhor Voltaire, cada capítulo traz, além do título, quatro explicativas e bem-humoradas linhas.
A coisa pega fogo já no primeiro capítulo, intitulado Um padre com fogo na batina (a explicação à la século 18 detalha: "em que se narram as estripulias de um vigário namorador e revolucionário, que amava a república e acabou ajoelhado aos pés do rei").
Já para a caserna! - Brasileiro não tem memória - eis um bordão sempre repetido. Mas muitos de nós lembram que um cronista talentoso como Lourenço Diaféria teve uma brilhante carreira interrompida por uma crônica nos tempos da ditadura, porque comentou o xixi que uns boêmios desocupados fizeram na estátua do Duque de Caxias na Praça Princesa Isabel, no centro de São Paulo (a crônica foi publicada na Folha de S. Paulo e provocou reação tão violenta por parte das autoridades que o próprio parece ter murchado - jamais voltou a ser o mesmo).
Pois em 15 de março de 1877, aos 48 anos, e já muito doente em virtude da tuberculose que o mataria naquele mesmo ano, José de Alencar, na condição de deputado, foi à tribuna e pronunciou um discurso histórico, que abalou as bases do àquela altura bem precário império brasileiro. "Senhores", começou com sua voz cavernosa, "a história inflige às vezes epítetos cruéis a certas épocas, a certos acontecimentos e aos homens que neles figuram. Estes epítetos perduram como um estigma. Receio, senhores, que se não houver uma reação de nossa parte, esta situação seja punida pelo sarcasmo de nossos filhos com o título de 'situação de compadres'. Creio, senhores, que foi de Hume [filósofo empirista inglês] este triste pensamento: 'A corrupção é uma prova de liberdade'. Mas essa liberdade que só chega para os ricos é a mais torpe das tiranias para o cidadão honesto (...)".
Naquela altura, o Duque de Caxias, presidente do Conselho de Ministros e ali presente, mostrou publicamente sua indignação. Mas Alencar continuou: "Nós somos o único país do mundo regido pelo sistema representativo onde - permita-me o nobre duque que lhe diga, e nisso não vai a menor quebra de sua glória - a direção política, a iniciativa governamental é confiada a uma alta patente militar, a um guerreiro ilustre, mas completamente estranho às lutas parlamentares. Na própria Prússia, país militar, não é a espada de Moltke que governa, é a inteligência de Bismarck".
Em bom português, comenta Lira Neto, "o Duque de Caxias, herói da Guerra do Paraguai, marechal que acumulava os cargos de senador, ministro da Guerra e chefe do Executivo nacional, estava sendo convidado por Alencar a voltar, em ritmo de marcha, para o quartel".
Por essas e outras, é fundamental a leitura desse livro para se entender melhor como as coisas funcionavam - quando funcionavam - no segundo império; como a corrupção já andava livre e solta; e como as podres bases históricas do século 19 cimentaram nosso passado mais recente e mesmo nosso presente duvidoso. Fartamente recheado de cartuns e ilustrações de época, o livro não pode deixar de ser lido por todos os que se interessam pelo Brasil. Transcende, portanto, a interesses específicos de estudiosos ou acadêmicos. Pode ser lido com enorme prazer por todo tipo de público - e isso, definitivamente, não é pouco.
Trecho
-Senhores...
Fez-se silêncio diante daquele fio de voz, saído do homenzinho de barbas grisalhas que acabara de se instalar na tribuna da Câmara dos Deputados. Poucos minutos antes, uma observação corria de boca em boca, em meio às rodinhas de parlamentares presentes ao plenário: era impressionante como o homem definhara nos últimos meses. Virara uma garatuja.
Os olhos miúdos haviam perdido o brilho característico e agora praticamente sumiam em meio às negras olheiras. Na outrora vasta cabeleira, uma entrada pronunciada alongava-lhe a testa e ajudava a conferir-lhe o ar de velhice precoce. A barba tomara conta do rosto magro e descera abundante sobre o peito, a ponto de os fios desgrenhados esconderem-lhe o nó da gravata. Tinha apenas 48 anos de idade. Parecia, no mínimo, ter vinte a mais.
Magreza, palidez, tosse constante. Os sintomas eram suficientemente reconhecíveis para que a palavra malfazeja passasse a ser murmurada pelos salões e corredores da Câmara, sempre sussurrada pelas costas do homenzinho, com as mãos em concha, acompanhada de olhares mútuos de receio:
-Tuberculose...
O deputado José de Alencar, romancista consagrado, com mais de quarenta livros publicados, consumia-se a olhos vistos. Retornara recentemente de uma viagem à Europa. Pedira licença ao Parlamento e partira para tentar encontrar, com a ajuda do clima do Velho Continente, uma cura para a moléstia progressiva, a fraqueza nos pulmões que o atormentava desde a adolescência. Foi em vão.
Seis meses depois, desembarcara de volta ao Brasil ainda mais abatido. Conhecido pela pontualidade britânica, passara a faltar sessões seguidas e a chegar atrasado com freqüência na Câmara dos Deputados, casa para a qual havia sido eleito, pela quarta vez, em 1876. A saúde, debilitada, dificultava as menores saídas à rua. Dizia-se que havia sumido do mapa. Deixara inclusive de freqüentar as rodas literárias da Livraria Garnier, à Rua do Ouvidor, onde escritores costumavam se reunir para passar tardes inteiras a falar mal da política e bem da literatura.
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