É uma virtude literária representar o cotidiano, como em um passe de mágica, em suas sutilezas, subjetividades e epifanias. Um dom raro, que faz dos estados de transformação dos personagens revelados a ponte em que embarcamos na leitura e que se torna a jornada de nossas reflexões.
Jovem, a argentina Samanta Schweblin, aos 34 anos, se mostra observadora atenta e criadora afiada, não à toa ela é frequentemente comparada a escritores como Jorge Luis Borges, Bioy Casares e Julio Cortázar.

Seu último livro de contos, 'Pássaros na Boca' (Editora Benvirá, 223 páginas, preço médio R$ 30), acaba de chegar às prateleiras brasileiras e é um bom achado para quem quer viajar sem sair do mundo real. Textos curtos, com média de dez páginas por história, às vezes bem menos e raras vezes um pouco mais, são preenchidos com situações que poderiam acontecer a qualquer um, como uma insólita chegada a um restaurante no qual o dono está perdido porque sua mulher está desmaiada atrás do balcão, o encontro com um dentista coreano ou então um trabalho de entrega de alimentos em uma comunidade carente.

As situações retratadas beiram o normal até certo ponto, no qual se revelam abstrações sobre o comportamento humano e as relações que cada um tem com o mundo e com o outro. Um buraco, muitas vezes não preenchido, se abre no enredo. Então o leitor complementa o fato com o que dispõe na mente. A falta de obviedade, a busca por uma escrita que conjuga a participação efetiva de quem a lê, transforma Samantha em uma boa promessa do futuro.

Ainda há cortinas que ela abre que não revelam vistas de tirar o fôlego, que ficam devendo um pouco ao seu potêncial lírico. Mas é fato que ler o seu trabalho é uma jornada da qual se sai com pensamentos muito mais interessantes do que se entra.

É uma literatura de partida, de busca, não de chegada. E isso, presume-se, será uma constante na trajetória da jovem Samantha, que ainda tem muito tempo para chegar a ser comparada a clássicos como Borges e Cortázar. E até superá-los.