Irmã Dulce,do berço de ouro baiano aos altares da Igreja Católica; biografia traz trajetória da freira nascida em Salvador que trocou vida de moça rica pela atenção aos pobres
Último presidente da ditadura militar, João Figueiredo visitava em Salvador, capital da Bahia, o hospital fundado por Irmã Dulce, quando chocou-se ao ver doentes dividindo espaço com defuntos. A cena deprimiu o general e ele chorou. Corria o ano de 1979. Com a sua rusticidade habitual, o homem que pouco antes havia dito preferir o cheiro dos cavalos ao do povo prometeu arranjar recursos para melhorar a estrutura de atendimento do complexo médico: “Nem que tenha de assaltar um banco”. “Me avise que vou com o senhor”, respondeu, de pronto, a religiosa.
O episódio, que reúne algumas das principais características da freira soteropolitana Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes (1914-1992), a primeira mulher brasileira a ser canonizada, em solenidade marcada para hoje, no Vaticano, está relatado no livro Irmã Dulce, a Santa dos Pobres (Editora Planeta, 296 páginas, R$ 42,40), recém-lançada biografia da santa escrita pelo jornalista paulistano Graciliano Rocha.
Com riqueza de detalhes, captados em oito anos de pesquisa, o livro refaz a trajetória da mulher que, nascida no seio de família abastada (o pai era dentista e professor universitário), logo aos 13 anos passou a demonstrar preocupação extrema com a situação dos pobres de Salvador – levas de camponeses, que ficaram sem trabalho por causa da crise econômica mundial deflagrada pela quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, migraram para a capital baiana, já apinhada de miseráveis descendentes de escravos libertados pela Lei Áurea, em 1888.
“Na Salvador em que ela viveu, a urgência da pobreza sempre fez da caridade um bem de primeira necessidade”, sintetiza o autor. A devoção intensa ao catolicismo levou-a a se tornar freira em Sergipe. Ao receber o tradicional hábito azul e branco, aos 19 anos, adotou o nome de Irmã Dulce em homenagem à mãe – Dulce Maria de Souza Brito –, que morrera de complicações de parto.
De volta à terra natal, a religião não bastou para preencher a existência de Irmã Dulce. Em 1949, sem ter onde alojar doentes que vinham lhe pedir socorro, obteve autorização do Convento Santo Antônio para utilizar o galinheiro anexo para acomodá-los. Começava aí a formação do Hospital Santo Antônio, o coração das Obras Sociais Irmã Dulce, hoje uma das principais referências em medicina gratuita do País.
Sem ter como bancar os custos, aproximou-se de políticos, como o então presidente José Sarney (do qual tinha o número de telefone particular) e empresários poderosos, a quem empurrava as contas. O livro conta ainda algumas paixões mundanas de Irmã Dulce, como o futebol (torcia pelo Ypiranga) e a música (tocava sanfona), e os bastidores da indicação ao Prêmio Nobel da Paz.
TV Aparecida e Canal Brasil exibem filme sobre a religiosa
A canonização da religiosa baiana motiva a exibição do longa-metragem Irmã Dulce, dirigido por Vicente Amorim, 53 anos, em dois horários neste domingo. O filme passa ao meio-dia e meia na TV Aparecida, emissora católica com sinal aberto, e, às 20h, no Canal Brasil – restrito a assinantes.
O longa foi filmado no ano de 2013 em Salvador, a capital onde Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes virou o “Anjo Bom da Bahia”. Boa parte dos figurantes do filme são ‘Filhos de Irmã Dulce’, como são conhecidas as pessoas que receberam pessoalmente os cuidados sociais da religiosa.
Diretor de Besouro (2009), Corações Sujos (2011) e Rio, Eu te Amo (2014), Amorim, que é filho do ex-ministro Celso Amorim (Defesa), disse que o desejo de filmar a vida de Irmã Dulce começou na adolescência. “Ela era figura muito midiática. A gente via ela na televisão toda hora. Meu avô tinha a maior admiração por ela. Curiosamente, meu avô era médico, ateu e comunista”, contou ele a O País do Cinema, do Canal Brasil.
Com 90 minutos e indicado a espectadores a partir de 10 anos, Irmã Dulce, segundo sinopse divulgada pelo Canal Brasil, acompanha as provações da religiosa: a “doença respiratória incurável, o machismo, a indiferença de políticos e até mesmo os dogmas da Igreja para dedicar sua vida ao cuidado dos miseráveis”.
Irmã Dulce é interpretada pelas atrizes Bianca Comparato, dos 20 aos 45 anos, e por Regina Braga. O longa acompanha a vida da religiosa até 1980, quando, no auge de sua popularidade, foi abençoada pelo Papa João Paulo II.
Santa curou hemorragia e devolveu visão
Quando o sol estiver nascendo na capital da Bahia neste domingo, às 5h15, o papa Francisco estará iniciando na Praça de São Pedro, no Vaticano, sede da Igreja Católica onde serão 10h15, a cerimônia de canonização da primeira santa nascida no Brasil, em Salvador – o paulista Frei Galvão foi o primeiro homem brasileiro canonizado, em 11 de maio de 2007.
O processo de santificação da freira baiana, que passará a ser chamada de Santa Dulce dos Pobres, foi o terceiro mais rápido da história moderna da Igreja Católica, acontecendo 27 anos após sua morte, em 1992. Ela só perde para a indiana Madre Teresa de Calcutá (1910-1997), santa 19 anos depois do falecimento, e para o campeão polonês Papa João Paulo II (1920-2005), nove anos depois.
O primeiro milagre da religiosa foi reconhecido pela Santa Sé em 2003. Por sua intercessão, em janeiro de 2001, a sergipana Claudia Cristiane dos Santos teria sobrevivido a hemorragia pós-parto depois de ter sido desenganada pelos médicos.
Cego havia 14 anos, o maestro baiano José Maurício Moreira, hoje com 51 anos, voltou a enxergar em 2014, no que foi reconhecido como o segundo milagre de Irmã Dulce, tornando possível a canonização da freira.
Para ser considerado milagre, o fenômeno precisa atender a quatro requisitos: instantaneidade (sua manifestação tem de se dar logo após o apelo), perfeição (precisa contemplar 100% do que foi pedido), perenidade (o problema solucionado não pode voltar a acontecer) e sobrenaturalidade (a ciência não pode conseguir explicá-lo).
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