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Argentina poderá sair da crise nos próximos meses
Antonio Rogério Cazzali
Do Diário do Grande ABC
26/01/2002 | 17:10
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A Argentina deverá iniciar sua saída da crise econômica nos próximos meses e poderá até apresentar um crescimento a partir do próximo ano, desde que haja um encaminhamento criterioso e que a população aceite as perdas sem novos panelaços. Estes são alguns dos pontos levantados pelo diretor-presidente da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), Simão Davi Silber, que também ocupa a cadeira de professor de Economia Internacional da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP). Na opinião do professor, o engajamento político dos argentinos poderá dificultar a retomada das diretrizes econômicas.

Segundo ele, o Brasil precisa ser condescendente com a Argentina neste momento, por meio de concessões que permitam a retomada do crescimento econômico daquele país. Para Silber, uma das saídas está no aumento de suas exportações, o que poderá colocar em risco a dinâmica atual do Mercosul, uma vez que o país poderá preferir mercados mais interessantes. A definição de uma política cambial e a renegociação das dívidas internas e externas são medidas que devem ser tomadas com urgência pelo governo argentino. Elas são necessárias para que o Fundo Monetário Internacional (FMI) dê o seu aval, na garantia de novos empréstimos estrangeiros. De acordo com o professor, com a desvalorização do peso, empresas que têm unidades na Argentina, a exemplo da Scania e da Volkswagen, poderão intensificar suas produções naquele país, pois os custos de lá serão menores do que os do Brasil. A seguir, os principais trechos da entrevista:

DIÁRIO – A Argentina sairá da crise?

SIMÃO DAVI SILBER – Certamente, ela sairá. A questão da Argentina é grave, porém, como os problemas foram construídos durante muito tempo, a solução não será imediata, levará alguns meses. Acredito que em abril ou maio esta fase mais traumática já tenha sido superada. Se a solução porventura for bem encaminhada, eu diria que em 2002, 2003, a economia argentina já poderá ver algum crescimento.

DIÁRIO – A Argentina já chegou no fundo do poço ou a situação pode ficar ainda pior?

SILBER – Do ponto de vista econômico, não creio que a coisa piore. Agora, do ponto de vista político, é difícil prever como a sociedade argentina reagirá. Além de uma crise econômica, há uma crise política monumental. Um país que troca de presidente tantas vezes em curto período de tempo não pode estar bem. Tudo depende de como a população vai aceitar os custos, embora eles sejam altos. Se não houver grandes revoltas e o povo não tentar derrubar o presidente de novo, a crise pára onde está. Agora, se o povo não arredar o pé em sua revolta, a crise poderá ficar ainda pior.

DIÁRIO – Quer dizer que uma revolta maior não traria resultados mais imediatos?

SILBER – Não. Isso só empurra a solução para adiante. O grande problema hoje é fazer a população aceitar que ela perdeu. Eles estão revoltados porque aplicaram dinheiro nos bancos e não podem sacar, além do que o dinheiro já vale menos. Como é que você explica para o sujeito que levou dólares para o banco, que acreditou no país, que seu dinheiro está preso e que agora está desvalorizado?

DIÁRIO – Por que a Argentina chegou a esta situação caótica?

SILBER – A própria história da Argentina causou esta situação. O país só chegou neste ponto porque cometeu uma série de erros sistemáticos, durante muito tempo. Isto teve início logo após a Segunda Guerra. Antes da Segunda Guerra Mundial, a Argentina era um dos melhores países do mundo. Tanto é que eles nem se consideravam latino-americanos. Mas, com o peronismo, extremamente corporativo, gradualmente a economia do país começou a caminhar em uma direção errada. O sistema só beneficiava o governo e empresários. Além disso, o sindicato era pelego. Dentro do sistema de Peron, o país deixou de ser competitivo, com uma economia fechada e protecionista.

DIÁRIO – Já que a situação se agravava ano a ano, por que ela estourou só agora?

SILBER – Esse modelo corporativo um dia tinha de chegar ao fim, pois o espólio das riquezas e a sucessão de medidas para mascarar a situação, a exemplo da Guerra das Malvinas, teve um custo enorme para o país. O problema se acentuou a partir da segunda metade dos anos 80, com um descontrole muito grande. O governo já não tinha recursos e passou a emitir muito dinheiro, o que fez com que a inflação disparasse. Houve a hiperinflação no fim da década de 80. E então quando se chega na hiperinflação, no descontrole total, é que vem o Plano Cavallo, ele aparece em 1991 para salvar o país do caos total.

DIÁRIO – Mas isso não resolveu o problema, não é mesmo?

SILBER – Em parte, sim. O plano dele, durante cinco ou seis anos, funcionou. Você não pode dizer, pelo menos até 1997, que existiram problemas gravíssimos na economia Argentina. A economia, até então, crescia de 5% a 6% ao ano, sem inflação, mas era um modelo de equilíbrio de fio de navalha para o país, porque dependia do peso. O peso foi acoplado ao dólar, na qualidade de um para um, e como a Argentina nunca foi um grande exportador, ela não conseguiu gerar dólar. Então como se gerou dólar neste período? Com privatizações e tomada de empréstimos. Então vieram as crises internacionais e aí ela começou a ficar muito vulnerável. As crises que se seguiram foram: crise asiática (1997), crise russa (1998), crise brasileira (1999), crise turca e argentina (2000, 2001). Então uma série de eventos empurraram a Argentina para a beira do precipício. E então, no fim de 2001, alguém deu um empurrão definitivo na Argentina em direção ao colapso financeiro, que foram os ataques especulativos.

DIÁRIO – A alternativa não seria mexer no câmbio?

SILBER – Eles poderiam ter mexido no câmbio, mas o povo morre de medo disso, e com razão, pois a inflação poderia voltar totalmente descontrolada, como pode ficar agora. Ninguém sabe qual vai ser a inflação da Argentina. Estima-se que ela fique em 5% ao ano, mas este índice pode ser de 10% ou 30%. Ninguém sabe. E uma outra problemática da Argentina em relação ao Brasil é que ela só exporta aquilo que usa ou come, ou seja, petróleo, trigo, milho. Então, se ela mexer no câmbio, o custo de vida sobe, o que difere do Brasil. E tem outro fator: quando você congela o preço por dez anos, quando resolve liberá-lo é como abrir uma panela de pressão que há muito estava no fogo. Ao tentar abri-la, vai acontecer uma explosão.

DIÁRIO – E o que fez o governo?

SILBER – Quando a inflação disparou, o governo começou a jogar um monte de dinheiro no mercado. As pessoas pegavam o dinheiro e queriam comprar o que estava disponível, mas a produção não crescia na mesma proporção. Por que a Argentina fez isso? Ela chegou à conclusão de que o governo não tinha mais de onde tirar. Então a única forma de amarrar o governo foi refreando a emissão de dinheiro. O Plano Cavallo é basicamente isso, só se pode emitir dinheiro na Argentina se entrar dólar. Para cada dólar que entra, você pode emitir um peso; para cada dólar que sai, você tem de recolher um peso. É uma forma de controlar o governo. Na Argentina, as províncias mandam muito. E essas províncias não arrecadam, quem arrecada é o governo federal, que depois transfere o dinheiro para as províncias. Um arrecada e ou outro gasta. Não dá certo. Nessa situação, o governo teve de fazer uma dívida. Chegou a um ponto em que o país disse que não teria condições de pagar. É o famoso calote.

DIÁRIO – E qual o impacto da crise argentina no Brasil?

SILBER – Essa idéia de que o Brasil está descolado da Argentina não funciona. Há a pendência comercial e financeira. Tendo em vista o bom volume das transações comerciais entre os dois países a partir da década de 90, dentro do Mercosul, dá para perceber como uma país tem ligações com o outro. Se tiver uma crise muito grande na Argentina, eles vão desvalorizar muito a moeda e o produto deles ficará mais barato. Eles vão exportar mais para a gente. Assim, nós vamos exportar menos e comprar mais, o que gera um déficit interno. Isso não é interessante para nós. No aspecto financeiro, quem emprestou para a Argentina, com o calote, vai pensar duas vezes antes de emprestar para o Brasil ou vai cobrar juros muito altos, pois entendem que o risco aqui é grande.

DIÁRIO – A crise da Argentina compromete muito o Mercosul?

SILBER – Há pontos positivos e negativos. A possível flutuação do câmbio na Argentina, a exemplo do que ocorre no Brasil, deixará o regime cambial dos dois países muito parecidos. O que será muito interessante para o Mercosul. O ponto negativo é que a Argentina, com sua necessidade de exportar, talvez enxergue mercados mais interessantes, fora do Mercosul.

DIÁRIO – O que o sr. sugeriria para as empresas que têm fábricas na Argentina e forte atuação no Brasil, a exemplo da Scania e da Volkswagen?

SILBER – O momento não é de deixar de operar na Argentina. É exatamente o contrário. Produzir lá deverá ficar mais barato do que no Brasil. Muitos produtos deverão fazer o caminho inverso.

DIÁRIO – O que o Brasil deve fazer em relação à Argentina? SILBER – Deve ser bastante condescendente com a Argentina. Fazer uma série de concessões. A recuperação rápida da Argentina é importante para o Brasil, pois o país é viável. Ela tem ótimos recursos naturais, é auto-suficiente em petróleo, tem bons recursos humanos, não tem por que dar errado. Só dá errado se o governo argentino fizer besteira. Um ponto positivo é que o atual presidente, Eduardo Duhalde, é de Buenos Aires e deve pensar diferente dos anteriores, que vinham das províncias e tinham a idéia apenas de usufruir e não gerar nada. Um ponto negativo nele é que é peronista.

DIÁRIO – O que deve fazer a Argentina para ganhar o aval do FMI?

SILBER – Primeiro negociar a dívida com os credores, internos e externos. Depois, é preciso definir um regime cambial, o que deverá ser flutuante como no Brasil. Em seguida, definir como a economia vai funcionar daqui para frente. O governo precisa revitalizar seu sistema financeiro, ter boas relações com os bancos e emitir títulos do governo para que a economia do país ganhe mais confiança.

DIÁRIO – Qual a diferença entre a crise argentina e os problemas do Brasil?

SILBER – A grande diferença é que o Brasil levou mais de uma década para fazer aquilo que eles estão fazendo de uma vez só. Em 1987, o Brasil declarou moratória, inadimplência, em 1990 houve seqüestro dos ativos financeiros, em 1999 nós desvalorizamos a moeda, e não tivemos uma crise tão dramática quanto a dos argentinos. Outro problema da argentina é que o povo é mais instruído politicamente e, por isso, se mobiliza com mais facilidade.

DIÁRIO – E quanto à atual política econômica do Brasil?

SILBER – Agora há grandes chances de o país entrar nos trilhos. A reforma tributária deverá ficar na pauta, a exemplo da reforma do sistema previdenciário, mas ambas mexem com interesses e é aí que a coisa pode emperrar. Essas mudanças um dia sairão do papel, afinal o país está amadurecendo politicamente. Há poucos anos, se pensarmos bem, nem para presidente votávamos. Agora isso já é uma realidade. O fato é que será muito saudável tanto para a Argentina quanto para o Brasil que as duas economias estejam saudáveis. Este é o momento de o Brasil estender sua mão para a Argentina. Isso, em virtude da grandeza do Brasil e de seu volume de negócios com outros países, não chegará a comprometer seu bom andamento interno.

Colaborou Flávia Tonin




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