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Tsunami em Paraty
Thiago Mariano
Do Diário do Grande ABC
06/07/2011 | 07:26
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Valter Hugo Mãe é um inventor de verdade, daqueles que Fernando Pessoa poderia dizer que é poeta e fingidor. Criou para si, na ânsia de dar sentido à terceira idade a qual seu pai não chegou, o peso da decrepitude da mente e do corpo ao avançar dos anos. O resultado está exposto em 'A Máquina de Fazer Espanhóis' (Cosac Naify, 256 páginas, preço médio R$ 40), que ele lança na Flip, que abre hoje em Paraty.

Prestes a completar 40 anos, nascido na Angola e crescido em Portugal, jogou aos velhos do asilo que criou no livro o peso dos anos vividos sob o regime ditadorial de Salazar e a tristeza de ver Portugal esfacelado, à sombra da prosperidade da Espanha, país vizinho e concorrente nos descobrimentos antigos.

É também inventor de uma prosa, a qual José Saramago descreveu como "tsunami linguístico, semántico e sintático". Em entrevista ao Diário por e-mail, o escritor, que é também artista plástico, DJ, poeta e vocalista de banda de rock, conta sobre velhice, ditadura, escrita e metafísica. E sobre o que não quer chamar atenção na Flip, as letras minúsculas que conserva mesmo após os pontos e parágrafos em seus textos: "Gostaria que as pessoas escutassem uma vez a explicação acerca do uso das minúsculas nos meus livros e não me perguntassem isso em todas as passagens para o café, para o banheiro ou para um pé de dança", revela, querendo pôr um ponto final no assunto.

DIÁRIO - O protagonista do livro e seus amigos trazem na bagagem a visão de um país que viveu longos anos de ditatura. Você nasceu depois de Salazar ter morrido. Qual herança deste período a sua geração recebeu?
VALTER HUGO MÃE - Eu nasço já depois e cresço praticamente em democracia, no entanto, como passei a infância numa pequena vila do interior, a ditadura por ali foi acabando aos poucos. Havia uma ditadura que estava dentro da cabeça das pessoas e que não se vai embora de um dia 24 para um dia 25. Lembro-me de na escola primária se lamentar a pouca vergonha que agora se via nas ruas. Eu, com 6 ou 7 anos, não saberia o que seria aquela crítica, mas as professoras queixavam-se e puniam-nos muito violentamente (com maus tratos físicos) quando fazíamos algo que diziam ser uma liberdade perigosa que nos fazia perder o respeito que a ditadura tinha ensinado ao povo. Queriam que continuássemos patriotas, religiosos e muito fiéis à família. Havia imagens de Nossa Senhora de Fátima em todo o lado. A escola parecia um cemitério. Era terrível.

DIÁRIO - Quais as principais divergências do pensamento da geração mais nova em confronto com os que viveram a ditadura?
HUGO MÃE - Hoje a relação que a minha geração tem com o tempo do outro regime é muito confusa. Poucos tiveram efetivamente interesse em conhecer o que aconteceu e como aconteceu a revolução. E com o contínuo desprezo nacional, uma autoestima sempre diminuta, é mais comum ouvirmos dizer mal de tudo do que a separação lúcida do trigo e do joio. Tenho pena. A mim importa-me muito que nenhuma ditadura se volte a instalar. Importa-me muito aprender isso com o passado e lembrar. Lembrar sempre.

DIÁRIO - Considera que a imersão à terceira idade te deixará um pouco mais imune aos problemas dela ou te deixa com mais medo de envelhecer?
HUGO MÃE - Tenho mais medo de envelhecer, sim. Vejo de perto demais, porque vi sensibilizando-me, procurando ocupar o lugar de alguém com mais de 80 anos e, talvez por me faltar aprender tanta coisa, o salto imediato dos meus quase 40 para lá é um pouco violento. Eu acredito que chegar lá é um percurso todo ele de preparação. Assim, vou esquecendo o romance que escrevi e vou seguindo só a vida. Se tiver de ser, a vida há de saber ensinar-me o necessário para chegar aos 80 sem estar louco ou em pânico.

DIÁRIO - Qual o reflexo da oralidade no que você escreve?
HUGO MÃE - Quero que o texto literário seja tão honesto quanto o que as pessoas dizem umas às outras. Essa honestidade de ser efetivamente um discurso e não uma peça estética que não poderia nunca surgir na natureza de uma fala. Claro que gosto muito de autores que são pura estética, e nenhum livro deixa de ser uma coisa bem diferente da realidade, mas a utopia de alcançar um texto que todo ele pareça vida plausível é-me muito cara.

DIÁRIO - Você usa o ‘Esteves sem metafísica' do poema 'Tabacaria', do Fernando Pessoa, como personagem do livro. Como ele te chamou atenção?
HUGO MÃE - Na escola. Eu teria 13 anos. A professora disse que o Esteves não pensava em nada e eu pensei que pensar em nada era impossível e que o Fernando Pessoa era uma besta por dizer isso de alguém. Era como dizer de alguém que seria tão burro que nenhuma ideia lhe ocorreria. Eu, que passei a adorar o Pessoa algum tempo depois, nunca mais consegui esquecer aquela sensação de insulto.




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