Economia Titulo Consumidor
Cadastro positivo: quatro problemas
Rafael Zanatta
Pesquisador do Idec
18/10/2018 | 07:13
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As discussões sobre ‘novo cadastro positivo’ começaram há dois anos e, desde sua proposição inicial pelo Banco Central do Brasil, estiveram cercadas de polêmicas. A principal delas refere-se à inclusão automática dos dados pessoais e financeiros de milhões de brasileiros em bases geridas por Serasa Experian, Boa Vista SCPC e Quod, o novo birô de crédito criado pelos cinco maiores bancos do Brasil (Banco do Brasil, Bradesco, Caixa Econômica Federal, Itaú-Unibanco e Santander).

Com inclusão automática de informações de hábitos de pagamento de contas de mais de 100 milhões de brasileiros nessas bases, seriam eliminados diversos ‘custos de transação’ em benefício dessas empresas. Imagine o quanto seria possível economizar deixando de gastar em publicidade, custos operacionais (funcionários treinados na ‘venda’ do cadastro positivo) e obtenção do consentimento de cidadãos. Não é à toa que a Quod afirma que está “aqui para impulsionar o cadastro positivo no Brasil e, assim, mudar o jogo”. Na realidade, mudar as regras do jogo é grande negócio. Mas seria justo e necessário?

A Câmara dos Deputados dividiu-se com relação ao tema. Entre abril e maio, por diversas vezes, Rodrigo Maia tentou coordenar sessões de aprovação do PLP 441/2017, considerado por entidades de defesa do consumidor e juristas como projeto em desacordo com a Constituição e com o interesse público. Em 9 de maio, após tentativa de retirada de pauta e da obstrução de partidos de oposição, a reforma do cadastro positivo foi aprovada por margem apertada: 150 deputados disseram ‘não’ ao texto final, enquanto 273 disseram ‘sim’. Mesmo em partidos como PSDB, PMDB e PP houve profunda divisão interna sobre o tema. Assim, o plenário aprovou somente o mérito do projeto. Os ‘destaques’ – pedidos para análise de partes do projeto após a discussão geral – não foram analisados. Na prática, a aprovação foi apenas simbólica.

Em junho, conforme noticiado pela Folha de S.Paulo, o governo adiou a votação dos destaques “para evitar derrota”. Em julho, a Câmara colocou o projeto em segundo plano por ausência de consenso. Paralelamente, em atendimento às exigências de ONGs e especialistas em tecnologia, a Câmara aprovou a tão aguardada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018), sancionada em agosto pela Presidência da República. Em entendimento correto da Câmara, a Lei de Dados Pessoais foi priorizada para, então, retomar a discussão sobre o cadastro positivo.

Aproveitando a janela de votações entre primeiro e segundo turnos – e sem chamar muita atenção da população, preocupada com os grupos de Whatsapp e as correntes sobre Bolsonaro e Haddad –, o PLP 441/2017 voltou à pauta da semana no plenário da Câmara dos Deputados. Retoma-se, enfim, questão central sobre a reforma do cadastro positivo: quais seriam os problemas da inclusão automática dos dados pessoais e financeiros dos brasileiros nessas bases dos ‘bons pagadores’?

Há, pelo menos, quatro problemas que precisam ser considerados pelos parlamentares. Primeiro, incompatibilidade principiológica com a recém-aprovada Lei de Proteção de Dados Pessoais. A lei afirma, pela primeira vez no Direito brasileiro, o princípio da ‘autodeterminação informativa’. Esse conceito relaciona-se à ideia de que todo cidadão possui o direito de decidir sobre os fluxos de seus próprios dados, em respeito à sua dignidade. Suas informações são parte de sua personalidade e, em ambiente democrático, é crucial garantir sua capacidade de decidir para que (e em que condições) seus dados podem ser utilizados.

Segundo, parece haver falso problema sobre a dependência da ‘inclusão automática’ para o bom funcionamento do cadastro positivo. Há um ano, 5 milhões de pessoas haviam aderido ao cadastro nos termos da Lei 12.414/2011. Esse número já cresceu para 7 milhões. Isso representa crescimento de 20% de cadastrados, graças ao esforço conjunto de birôs e empresas como Nubank e outras fintechs, que também passaram a defender o cadastro. O crescimento dos últimos meses reforça o argumento de que o cadastro positivo pode ser ampliado com o respeito ao direito de escolha. Terceiro, há problema relacionado à solução pensada pelo legislador para a ‘saída prévia’. O PLP 441/2017 diz que, uma vez aprovada a lei, as empresas possuem 90 dias para informar o cidadão, por qualquer meio, da inclusão automática, garantindo-lhe ‘direito de saída prévia’ (artigo 5º, parágrafo 7º). Como não há clareza de como essa comunicação deve ocorrer, abre-se espaço para que as empresas enviem, antes de acabar o prazo legal, e-mails ou mesmo mensagens de WhatsApp sobre as vantagens da inclusão automática – e isso seria considerado o suficiente para cumprir com a legislação. Há, ainda, questões operacionais não respondidas: como será possível monitorar o número de pessoas que pediram a ‘não inclusão’? Como operadoras de telecomunicações, água, luz e serviços básicos serão informadas para não enviarem essas informações aos birôs? Como será possível auditar a efetiva não utilização dessas informações pessoais?

Quarto, há problema de monitoramento de incidentes de segurança e uso incorreto de dados pessoais pelos birôs. De fato, houve avanço com a aprovação da Lei de Dados Pessoais. Porém, a Presidência vetou a criação da ‘autoridade nacional de proteção de dados pessoais’, órgão regulador formado por profissionais capazes de lidar com problemas complexos de cumprimento da Lei 13.709/2018. Não seria adequado a Câmara pressionar a Presidência a criar essa autoridade ou derrubar o veto que impediu a criação da autoridade? É dever do Congresso enfrentar essas questões. 




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