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Do outro lado do rio
Heloísa Cestari
Enviada a Arraial D'Ajuda
16/12/2010 | 07:29
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O motor da balsa é acionado no Rio Buranhém. Em poucos minutos, a Porto Seguro do axé, dos dançarinos sarados e das inesquecíveis viagens de formatura vai ficando para trás. Cede espaço para uma outra faceta do município, onde o sossego prevalece na areia e o batuque dos tambores perde a força em meio à ressonância de clássicos do rock, reggae e da MPB. O trajeto da embarcação dura apenas dez minutos, mas é o suficiente para descortinar uma Bahia completamente diferente. Nada de palcos de lambaeróbica, barracas lotadas, som ensurdecedor e gente se acotovelando para dançar no seu quadrado. Apesar do progresso experimentado nos últimos 20 anos, Arraial D'Ajuda soube preservar o ar rústico e ao mesmo tempo descolado que tanto atraiu paulistas, cariocas e mineiros da geração pé-na-estrada na década de 1970. Gente que largou as gravatas ou sapatos altos para levar uma vida com menos estresse à beira-mar, e que acabou transformando o vilarejo em um recanto confortável, com culinária sofisticada, onde até os empreendimentos de luxo investem em decorações praianas, mais despojadas, para manter a harmonia com a natureza.

Não é preciso muito papo para perceber que um dos grandes diferenciais de Arraial está justamente nas histórias de quem aportou por aquelas paragens anos atrás com espírito desbravador semelhante ao de Cabral quando avistou o Sul da Bahia cinco séculos atrás, mas com intuito bem diferente: queriam criar infraestrutura para morar ali e receber turistas sem quebrar a ‘magia' ou causar danos à natureza que um dia os persuadiu a mudar de vida.

Samira Martins, gerente do Arraial D'Ajuda Eco Resort, veio de São Paulo há 18 anos. "Não tinha nem telefone naquela época." Seu marido, Jaime, era executivo da Chevrolet e diplomata quando decidiu jogar títulos pro alto e montar uma pousada em Arraial. "Era tudo precário. Resolvi comprar um buggy e alugá-lo para quem quisesse passear pela região, mas ele ficava tão judiado que o conserto acabava saindo mais caro que o aluguel", lembra Jaime.

Maria Coração de Jesus Faria, 72 anos, dona da Barraca do Faria, na Praia de Pitinga (veja Guia de Viagem na página 5), não teve a mesmo encanto quando pisou pela primeira vez na região. Natural de Capelinha (MG), ela morou 38 anos em Belo Horizonte, onde mantinha uma confecção de camisas para executivos, e ficou horrorizada com a falta de estrutura de Arraial quando foi passar as férias com a família no Sul na Bahia 20 anos atrás. "Quando vi o cais, que era bem diferente do que é hoje, disse ao meu marido: ‘Não fico aqui nem cinco dias, que dirá 15! Não tem nada'. Mas depois me apaixonei. Meu marido, que sempre precisou de analgésico, em poucos dias já não pedia mais o remédio. Hoje, não saio daqui por nada. Passei aqui os melhores anos da minha vida", diz Dona Coração.

Viúva há dez anos, ela comanda a cozinha da barraca à beira-mar e conta com o apoio dos quatro filhos, 12 netos, três bisnetos e de um filho do "coração", fruto de um caso extraconjugal do marido. "Só soube da existência dele quando o rapaz já era moço, tinha 24 anos. Mas até no erro do meu marido, ele me beneficiou, porque eu ganhei um filho maravilhoso. O Elber é muito carinhoso comigo."

Até a geração paz e amor dos anos 1970 passou apuros para curtir o clima ‘mágico' de Arraial. A proprietária do hotel e restaurante Canto D'Alvorada, Angela Kurz, filha de uma suíça, chegou a ficar sozinha numa ilha, sem energia elétrica, no meio da noite, na década de 1980. "Ela fala que gritava e ninguém ouvia. Acabou atravessando a nado, na escuridão, morrendo de medo", conta sua filha, que ajuda a administrar o charmoso empreendimento na Praia de Araçaípe e preza pelo ambiente familiar, pessoal. "A gente chama o hóspede pelo nome e realmente fica amigo deles. Não tem aquela coisa de senhor ou senhora, a não ser que ele queira. Desse jeito eles ficam mais à vontade, sentem-se como parte da família."

Já o empresário Fernando Pereira de Azevedo, 55, construiu a vida em Arraial exatamente porque queria uma infraestrutura melhor para criar a filha. Hippie, ele largou a faculdade de arquitetura em São Paulo em 1976 e foi morar em uma comunidade alternativa com 150 jovens em Corumbau, também no Sul da Bahia. "Não aguentava mais São Paulo. Toda semana eu era parado por uma blitz porque tinha cabelão e barba. Aqui, fui recebido superbem. Todo mundo me acolhia."

A precariedade das condições de vida no vilarejo, no entanto, levou Fernando a mudar-se para Arraial. "A gente plantava, construía as próprias casas, vivia com os índios. Mas tudo beirava a seleção natural. O caboclo tem 20 filhos para vingar dez. Quando minha filha nasceu, resolvi vir a Porto Seguro para dar uma vida melhor a ela. Arrumei um barco e criei a Companhia das Índias Orientais: comprava açúcar, pólvora e especiarias em Eunápolis, trocava com os índios por farinha, coco e outras coisas que eles faziam e vendia em Porto Seguro. Mas o negócio não deu muito certo porque me pediam muito fiado", diz o ex-hippie, que depois montou uma casa de chá, um restaurante, e hoje administra uma pousada com projeto assinado pela filha arquiteta. "No começo, as pessoas ficavam em casa de morador. Mas depois começou a vir muito turista e outras pessoas de fora, com espírito empreendedor, passaram a construir pousadas com frigobar, piscina etc. Virou uma ‘corrida armamentista': ou a gente se adaptava para ficar igual a eles ou sucumbia. Várias pousadinhas sucumbiram dessa forma."

Essa mistura de adoradores do sol, hippies, artistas e excêntricos de todos os calibres e cantos do Brasil imbuídos do mesmo anseio de qualidade de vida e liberdade resultou no que Arraial D'Ajuda é hoje: chique sem perder a simplicidade que um dia encantou estrelas do quilate de Robert De Niro e Sophia Loren.

E o agito noturno revela bem a veia cosmopolita do distrito. Basta uma breve caminhada pelos paralelepípedos da Brodway ou da Rua do Mucugê para encontrar vitrines sofisticadas dividindo espaço com o barato artesanato indígena. No verão, o agito rola solto por lá, com opções que vão desde voz e violão em barzinhos à meia-luz até os animados luaus que adentram a noite na Praia do Parracho.

Além de cardápios com receitas coreanas, japonesas e até vietnamitas, a Mucugê abriga lojas como a gigante Terima Kasih, especializada em artigos de Bali, a grife de moda praia Lenny e o empório Don Giovanni, com farta carta de vinhos e espumantes. Quem sabe, numa dessas caminhadas descompromissadas, você não encontra algum astro dando sopa na esquina da Brodway com a 5ª Avenida?

A jornalista viajou a convite da Comissão de Turismo de Arraial D'Ajuda




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