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Zé Celso dirige Boca de Ouro, de Nélson Rodrigues
Do Diário do Grande ABC
15/12/1999 | 15:59
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Como ocorre nos templos religiosos, o Teatro Oficina ornamenta-se por inteiro - e nao só o altar ou palco - a cada ritual/espetáculo. A partir desta quinta-feira, a fachada do teatro exibe um sorriso de 32 dentes, porta de entrada para a imensa boca dourada na qual se transformou o Oficina. Uma boca dividida ao meio por uma comprida língua vermelha, efeito conseguido com uma passarela esticada no corredor central.

Tudo para abrigar a montagem de Boca de Ouro, de Nélson Rodrigues, a primeira peça do dramaturgo carioca encenada por José Celso Martinez Correa, diretor que criou o espetáculo que mais prêmios recebeu este ano - Cacilda!. E o diretor foi um dos vencedores do Prêmio Multicultural Estadao, eleito por um colegiado integrado por cerca de 3 mil votantes em todo o Brasil.

Boca de Ouro, a nova montagem do Grupo Uzyna Uzona liderado por Zé Celso, estréia com ingressos vendidos a R$ 1 (quinta e sexta) e, a exemplo do que ocorre nos teatros da Europa, será apresentado também no fim de semana de Natal. E Zé Celso vê nessa montagem o nascimento de um novo elenco no Oficina.

"A turma que fazia coro em Cacilda! viajou o ano inteiro realizando leituras dramatizadas, amadureceu artisticamente e está muito bem no Boca de Ouro", diz. "Foi isso que me entusiasmou; realizamos uma leitura dramática dessa peça, patrocinada pelo Sesc, e quando vi a qualidade desse elenco decidi fazer a montagem."

Contravençao - Boca de Ouro - que Zé Celso encena sem mudar nem uma linha sequer do delicioso texto original - é um retrato tragicômico de um personagem típico do subúrbio carioca, o bicheiro (vivido por Marcelo Drummond), misto de bandido e herói popular que enriqueceu na contravençao. Quando a peça tem início, chega à redaçao do jornal O Sol a notícia de que o lendário bicheiro morreu.

Imediatamente o repórter Caveirinha (Flávio Rocha) vai entrevistar a personagem d. Guigui (Sylvia Prado), uma ex-amante do bicheiro conhecido como boca de ouro por ter trocado todos os dentes naturais por uma dentadura de ouro. "Mas antes de sair da redaçao, Caveirinha é informado de que o dono do jornal quer uma reportagem na qual o bicheiro seja retratado como um cancro social; isso no mesmo jornal que o endeusava quando estava vivo", observa Zé Celso.

Para conseguir seu intento, Caveirinha nao informa d. Guigui da morte do bicheiro. Abandonada e ressentida, ela traça um retrato tenebroso do ex-amante, a partir da história de como ele tripudiou do ingênuo casal de suburbanos Leleco (Fernando Coimbra) e Celeste (Camila Mota) que acabam assassinados. E Guigui conta ainda sobre o envolvimento do Boca com três gra-finas.

"Essa mulher chutada constrói para o bicheiro a imagem que a elite costuma projetar em cima do povo: o bárbaro, o assassino violento que merece cadeira elétrica", comenta Zé que também estará no palco como o dentista, na curta cena de abertura da peça. Porém ao receber a notícia da morte do Boca, Guigui muda radicalmente seu depoimento. "Tomada de paixao, ela o retrata como um lorde que ajuda os pobres e tripudia das gra-finas para exaltar uma mulher de subúrbio, a Celeste", comenta Zé.

A nova versao provoca a raiva de Agenor (Reynaldo Gianecchini), o atual marido de Guigui, que ameaça abandoná-la. Interessado numa foto do casal que corrobore a versao que ele publicará, Caveirinha intervém e promove a reconciliaçao. Guigui conta entao uma terceira versao da trama que envolve os mesmos personagens. "Aí, diante da foto das figurinhas felizes, vem a versao do Boca covarde", observa Zé.

Mas no fim, Nélson Rodrigues ainda dá voz ao locutor da Rádio Continental que faz a cobertura do enterro do Boca e o descreve como um santo, um homem que roubava dos ricos para dar aos pobres. "Segundo o locutor o enterro está sendo acompanhado por uma multidao que consagra o bicheiro numa apoteose fúnebre nunca vista." Porém, o caixao é aberto e o mito cai: alguém roubara a dentadura de ouro do Boca, que imediatamente vira alvo de zombaria do povo.

"A cultura brasileira tem o espírito trágico das culturas bárbaras; só os gregos eram capazes dessa mesma exaltaçao e queda", diz Zé. Assim como Édipo num dia é rei e no outro um cego vagando no exílio, o Boca transmuta-se o tempo todo no imaginário popular.

De "deus azteca" a assassino cruel, de Robin Hood do subúrbio, que paga enterro e médico para a populaçao do bairro, transforma-se em covarde morto e, ainda por cima, assassinado da forma mais inesperada. "Ele é um deus pagao, uma entidade nao colonizada e nao batizada", diz Zé.

O fato de nao ter sido batizado é um dado importante no texto. A gra-fina Maria Luiza (Jacqueline Dalabona) tenta seduzi-lo pelo batismo: ela o convida a abandonar a vida mundana e entrar para uma ordem religiosa. "Ele tem uma certa nostalgia da ordem, como todos nós que temos liberdade", diz. "As vezes dá vontade de aceitar o sossego e a paz que essa ordem promete; é tudo engodo, mas promete."

Boca quase cede, mas acaba recuando. "E paga muito caro por isso", conclui Zé. O que faz Boca recuar é a história de sua origem. Ele foi abandonado numa pia de gafieira por sua mae, uma mulher que "morreu de rir" conforme informa um "pai-de-santo" (Aldo Bueno) por ele consultado. "Nisso a cultura brasileira diferencia-se da grega: a gente chora de alegria e ri da tristeza."

Nao deixa de ser também a atitude do Uzyna Uzona em frenética atividade no Oficina, mesmo sem ter conseguido nenhum apoio para a montagem. "Boca de Ouro nasce da impossibilidade total", diz. "Vivemos numa guerra contra o capitalismo na qual fazer é a vitória."




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