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Afeganistão: hqs, fotografia e jornalismo
Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
10/12/2006 | 19:56
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A fotografia foi a ‘vilã’ da pintura no século XIX; os quadrinhos lutaram durante os últimos 100 anos para ter status de arte; o jornalismo é considerado literatura menor desde o romance As Ilusões Perdidas, de Honoré de Balzac (1799-1850). Pois estas três formas de expressão cultural, marginalizadas em suas origens, encontram-se em O Fotógrafo (Conrad, 86 págs., R$ 46 em média, em três volumes), relato inovador de uma reportagem estilo jornalismo literário feita no Afeganistão em 1986 por um fotógrafo francês.

O precursor da fusão quadrinho-jornalismo é Joe Sacco, natural de Malta e autor das reportagens gráficas Palestina – Uma Nação Ocupada e Natal com Karadzic, sobre a guerra da Bósnia. É dessa fonte que O Fotógrafo se alimenta, acrescentando a fotografia.

Didier Lefèvre é fotojornalista. Um francês que há 20 anos topou fazer uma reportagem à moda antiga, com filme em película preto-e-branco, para a ONG Médicos Sem Fronteiras, que fazia atendimentos clínicos humanitários no Afeganistão em guerra. Hoje, o país ainda vive em conflito entre um governo pró-ocidente e as opositoras milícias talebãs fundamentalistas. Em 1986, o país era teatro de batalhas das superpotências União Soviética e Estados Unidos; a primeira apoiou um governo que lhe era satélite; o segundo ajudou os rebeldes sem perceber que sua vitória jogaria o país em guerra civil permanente e que cimentaria a trilha de Osama Bin Laden.

Didier fez as imagens e narrou as histórias para Emmanuel Guibert, autor do texto e das ilustrações. Este primeiro volume de uma série de três narra a formação da equipe e encontro com os guias afegãos no Paquistão e a dramática passagem noturna pela perigosa fronteira.

Encontros – A caravana percorre trilhas por montanhas geladas e planaltos desérticos entre homens mal-encarados. Cruzam refugiados fugindo da região em guerra para onde o grupo se dirigia. Na paisagem selvagem, um estranho encontro em meio ao planalto desértico: um solitário vendedor de biscoitos.

Cultura local e costumes são enfocados por Didier. Ele mostra a chadri das mulheres, a túnica que cobre todo o corpo; revela uma compra tradicional, feita com dois negociantes de mãos dadas cobertas por um pano, comunicando-se com toques nos dedos sem dizer palavra alguma. Bebe chá com leite gordo, intragável no início, mas necessário ao longo da viagem. Se espanta com os maus-tratos de cavalos e burros de carga, exigidos acima do limite de suas forças – alguns ficam pelo caminho – na subida das montanhas.

Com a caravana em marcha, Didier percebe como as nações pisotearam o país, como ONGs sem escrúpulos se vendiam para espionagem e tráfico, e como a pobreza local é usada em benefício de um grupo político ou outro. No caminho, registra carências humanas, de saúde principalmente. Imagens que relatam o drama de quem mais perde com a guerra, os inocentes entre fotos e desenhos, concepção que mostra e suaviza, mas não esconde.

Tintim – O repórter Tintim, personagem de aventuras em lugares exóticos, Afeganistão inclusive, tem sua conexão com O Fotógrafo. Tintim, jornalista de ficção, e Didier, fotojornalista de profissão, trilham rumos paralelos. O primeiro, viaja na fantasia do traço artístico e imaginação viva de Hergé (1907-1983); o segundo, revela sua observação a partir de um objetivo jornalístico. A diferença entre eles é o uso da perspectiva do desenho aliada à fotografia como testemunha de fatos.

Michel Foucault (1926-1984), no artigo As Palavras e as Imagens (1967), trata das conexões existentes entre discurso e figura, cada um com seu modo de ser, mas que “mantêm entre si relações complexas e embaralhadas”. Walter Benjamim (1892-1940) diz que imagem é “a dialética em suspensão”. Crítica, portanto. Em O Fotógrafo, fotos e desenhos têm relacionamento recíproco, simbiose complementar e atitude renovadora na narrativa, que dá pesos diferentes, mas complementares ao texto e à linguagem visual e suas possibilidades. O Fotógrafo, além de reportagem, é também arte, pois expressa um mundo que satélites, guerras cirúrgicas e bombas inteligentes não vêem. Didier avançou sobre Tintim.



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