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Dogville retrata norte-americanos pobres e perversos
Patrícia Vilani
Do Diário do Grande ABC
15/01/2004 | 20:01
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Foi o suposto antiamericanismo de Lars Von Trier o responsável pela maior polêmica do último Festival de Cannes – evento que, no ano passado, coincidiu com a eclosão da Guerra do Iraque e com a gradual derrocada de Saddam Hussein. Quem estava no centro da discussão não era o presidente George W. Bush e sua tendência à resolução das diferenças pela força bélica, mas sim o lado obscuro do povo norte-americano, retratado pelo diretor dinamarquês no longa-metragem Dogville. Um jornalista – norte-americano, claro – acusou Von Trier de falar de um país que não conhecia, e isso criou uma verdadeira obsessão em se justificar o sentimento contra os Estados Unidos contido nos filmes em cartaz no festival francês.

“Os norte-americanos não conheciam Marrocos quando filmaram Casablanca; e Dogville poderia se passar em qualquer parte do mundo. Não sou antiamericano. Pelo contrário, me sinto muito americano”, disse Von Trier, que prometeu completar a trilogia intitulada U.S.A. com Manderlay e Wasington (assim mesmo, sem o “h”).

Assistir a Dogville, que chega nesta sexta-feira ao circuito paulistano (a região está privada), é comprovar que a vila onde se passa a trama poderia estar situada em qualquer lugar do mundo, inclusive na Dinamarca de Von Trier. É um déjà vu, embora sua estética seja completamente diferente de tudo já feito em cinema.

Há uma associação óbvia com o musical Dançando no Escuro (2000), filme de Von Trier vencedor da Palma de Ouro naquela edição de Cannes. Ambos revelam a hipocrisia e a perversão assustadoras de pessoas aparentemente boas. São dois exemplos de “o homem lobo do homem”, teoria do filósofo Thomas Hobbes, pela visão de um diretor que, em outros tempos, preocupava-se mais em solidificar o Dogma 95 do que em fazer um grande filme.

O movimento de simplicidade absoluta não vingou, mas Von Trier sim. Dogville é hoje o resultado de tudo que o inspirou ao longo dos anos, inclusive o antiamericanismo – mas somente pelo fato de ter colocado Dogville em meio às Montanhas Rochosas. Do Dogma, restou a inventividade para criar o cenário da cidade, que expõe toda a pobreza e a dificuldade da comunidade de Dogville e, assim, não condená-la de imediato. E é por isso que o cenário não existe. Há apenas marcações no chão e poucos objetos, como se fosse um espetáculo teatral de baixíssimo orçamento.

A sensação, para o espectador, é semelhante à provocada por um livro. Cria-se no imaginário de cada um como são aquelas paredes que faltam, ou como é o cachorro que late etc. Não por acaso, a narrativa é quase literária, conduzida por um off com a voz de John Hurt. O filme é dividido em capítulos e iniciado por um prólogo, que se encarrega da identificação dos personagens.

Nicole – A beldade Nicole Kidman entra em cena para dar início à ação. Ela é Grace, uma mulher misteriosa que vai parar em Dogville quando foge de gângsteres. Convencidos pelo intelectual local, Thomas (Paul Bettany), a dúzia de moradores da vila resolve acolhê-la em troca de pequenos favores. No começo, esses serviços nem existem, mas pela insistência de Grace, que quer ser útil para compensar o risco pelo qual passam, os moradores aceitam que ela ajude em algumas tarefas rotineiras.

No entanto, a constante aparição da polícia e dos criminosos à procura de Grace deixa algumas pessoas aflitas. Expulsá-la está fora de cogitação, pois todos se acostumaram a usufruir de seus serviços. A solução é aumentar sua carga horária. E, à medida em que percebem o poder que exercem sobre a moça, começam a escravizá-la. São despertados todos os tipos de pulsões até então desconhecidos dessa comunidade paupérrima – da cobiça ao desejo sexual, do egoísmo ao sadismo. Só Von Trier poderia fazer um filme assim. Ainda bem que o fez.




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