Cultura & Lazer Titulo
James Joyce em tom menor
Paulo Henriques Britto
Especial para a AJB
02/01/1999 | 17:54
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O escritor James Joyce foi um mestre da prosa cujos poemas dificilmente ainda seriam lidos hoje, nao fosse o nome ilustre que os assina. As peças reunidas em Música de câmara (Iluminuras, R$ 19), recém-lançadas no Brasil na traduçao de Alípio Correia de Franca Neto, sao obras de um autor que jamais conseguiu se realizar plenamente no verso (embora os dois poemas finais, principalmente o último, sejam textos que poeta algum se envergonharia de ter produzido aos 20 anos). Mais ainda, sao obras de um autor ainda em formaçao, mal saído da adolescência; tal como Machado de Assis (outro grande prosador e poeta medíocre), Joyce nao foi um gênio precoce. Além disso, os poemas que o futuro autor de Ulisses reuniu em seu livro de estréia foram elaborados com a clara intençao de serem musicados, como o próprio título dá a entender. Nisso Joyce teve pleno sucesso, pois seus poemas vieram a ser adaptados por diversos compositores. Mas, para o tradutor, esse fato implica uma dificuldade adicional.

Quem empreende a traduçao de Chamber music tem dois caminhos pela frente. Diante dessas peças literariamente tao pobres e musicalmente tao ricas, o tradutor pode decidir tratá-las como textos literários em que cada palavra tem um significado importante a ser preservado - ou entao pode encará-las como letras de cançoes em que o som é o elemento primordial.

Ao optar pelo primeiro caminho, dando peso equivalente ao sentido, à dicçao e à forma de cada peça, o tradutor corre o risco de sacrificar alguns efeitos musicais para captar outros elementos do texto, e nesse processo expor a fragilidade dos poemas, destruindo o pouco que neles há de valor. Por outro lado, se resolve ater-se principalmente à musicalidade, tomando liberdades com o sentido e a sintaxe, o tradutor há de frustrar os leitores que recorrem a seu texto na tentativa de ler "exatamente o que Joyce escreveu", de encontrar no primeiro livro do mestre irlandês idéias e temas posteriormente desenvolvidos em sua obra madura.

Franca Neto optou por trilhar o primeiro caminho. Seu livro destina-se ao leitor que, tendo lido em traduçao Dublinenses, retrato do artista quando jovem e Ulisses, gostaria de conhecer outras obras do autor. Este leitor hipotético quer ler mais Joyce, e nao deliciar-se com letras de melodias desconhecidas ou inexistentes; ele conhece alguma coisa do inglês, mas nao o bastante para prescindir de uma versao em português poético com a qual cotejar e elucidar o original. Também lhe interessa uma contextualizaçao dos poemas tanto na literatura de língua inglesa quanto no momento específico da história da Irlanda e da vida do autor em que foram escritos.

Tudo isso, e mais, é oferecido por Franca Neto num livro que conta também com o habitual capricho gráfico das ediçoes da Iluminuras. Todas as nuanças de significado, todas as imagens foram recriadas em português, em versoes que, na medida do possível, preservam o esquema de rimas e métrica do original. As notas abundantes esmiuçam todos os elementos que ressoariam nas obras posteriores de Joyce. Porém, esse apego estrito ao componente semântico muitas vezes obriga o tradutor a abrir mao da musicalidade dos poemas.

Seria difícil musicar um texto poético contendo um enjambement tao violento quanto "Lúgubre, o vento grita e assola o/Jardim do amor em meio às trevas". Do mesmo modo, na passagem "Do sonhorvalho, alma, alça-te, do mais/Fundo torpor de morte e amor", o primeiro verso só com muita dificuldade pode ser escandido como decassílabo. Mas a intençao básica do autor é captar todas as nuanças de significado de "From dewy dreams, my soul, arise/From love's deep slumber and from death", mesmo que a música suave desses versos singelos seja prejudicada - e que seja necessário cunhar uma portmanteau word (palavra-valise) como as de Finnegans wake na recriaçao de um poema que, no final das contas, utiliza um vocabulário perfeitamente convencional.

Se atribuo a aspereza de muitas dessas versoes a uma escolha consciente do tradutor, é porque em alguns casos ele se mostra perfeitamente capaz de criar versos musicais em português. O que levanta a questao: nao teria sido mais apropriado optar pela estratégia oposta de priorizar a musicalidade, mesmo que isto implicasse sacrificar o valor - digamos assim - documental da traduçao? Talvez.

Mas, ao julgar o mérito de uma traduçao, o importante é determinar se o tradutor conseguiu atingir o que parece ser a sua meta, e neste caso a avaliaçao seria positiva. O que nao impede que outros tradutores resolvam tentar o outro caminho: o de recriar em língua portuguesa a delicada música de câmara de Música de câmara.




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