Cultura & Lazer Titulo
Morre o compositor Moreira da Silva
Do Diário do Grande ABC
06/06/2000 | 15:31
Compartilhar notícia


Foi-se o último malandro. O cantor e compositor Moreira da Silva morreu nesta manha, no Hospital dos Servidores do Estado, no Rio de Janeiro, onde estava internado há duas semanas. A causa da morte foi falência múltipla dos órgaos. Em 29 de abril, ele caiu em casa e foi internado numa clínica particular, mas transferido para o hospital público dias depois. A família nao tinha como pagar os R$ 4 mil de diária do Centro de Tratamento Intensivo (CTI). Músicos cariocas estavam programando um show para a semana que vem, em benefício do cantor.

Moreira tinha 98 anos. Até o ano passado ainda fazia shows e deixou determinaçoes para ser cremado. Apesar da fama de malandro, Moreira trabalhou desde cedo. Perdeu o pai aos 13 anos e parou de estudar para ajudar no sustento da família. Estava aposentado do serviço público desde 1959 e orgulhava-se de nao ter faltado ao trabalho nem um dia por causa da boemia, mesmo se dividindo entre programas de rádio e shows nos anos 40 e 50.

Antônio Moreira da Silva nasceu no dia internacional da mentira: 1º de abril. Por profissao, concluía, teria de fazer graça. Rir do mundo. Ou, contando melhor: Moreira da Silva nasceu num dia 15 de junho. Depois, mudou a data para 1.º de abril, piada sua que virou verdade. Nos últimos anos, morava na frente do Cemitério do Catumbi, no pé do Morro da Coroa - poderia ser "do Coroa", brincava.

"Moro aqui para dar menos trabalho aos que forem me levar para a última morada", dizia, olhando da janela do apartamento simples, ocupado por gente de classe média baixa. "Você disse que queria fazer foto? Queria ou quer? Se queria, fique querendo. Se quer, eu vou trocar de roupa" - diversao: criticar vícios de linguagem dos interlocutores.

Andava até o quarto para vestir a indumentária de malandro, personagem mítico de um Rio de Janeiro que já nao existe há meio século mas que ele ajudou a consolidar: terno de linho (obrigatoriamente S-120, o melhor) branco, camisa colorida eventual gravata escura, lenço saindo do bolsinho superior do paletó, lado do coraçao, chapéu panamá, com faixa escura, de cetim, sapatos brancos, eventualmente bicolores.

Transformava-se. Fazia valer aquilo da identidade secreta que os quadrinhos exploram: ao vestir o uniforme do malandro, virava - breque - Kid Morengueira, pronto para defender as mocinhas e desacatar os rufioes. O chapéu escondia a calva; abria-se o sorriso, abriam-se os braços no gesto anunciador da intervençao falada, cruzava-se a perna esquerda sobre a direita. Moreira da Silva remoçava 30 anos e cantava para o privilegiado que estivesse próximo: "Na subida do morro me contaram..." Que teria comprado de Geraldo Pereira por um conto e 300. Nunca confirmou, nem desmentiu. Desconversava, breque.

Trabalho e regalias - Moreira da Silva nasceu na Tijuca, na zona Norte do Rio, em 1902. Com 11 anos, foi trabalhar, primeiro numa fábrica de meias, depois noutra, de cigarros, em seguida como chofer de praça, mais adiante, funcionário público, como motorista de ambulância da prefeitura carioca. Trabalhou até a aposentadoria, embora com regalias de artista: assumiu o cargo público em 1926, quando já era relativamente conhecido nos meios seresteiros e já aparecia, vez por outra, em programas de rádio. Podia faltar, às vezes, portanto; ou aparecia um amigo disposto a cobrir seu turno, em troca da honra de haver prestado favor ao companheiro famoso. O fato é que Moreira da Silva sempre teve emprego fixo. Nao confiava na música para sobreviver. Constituiu família ao casar-se, em 1928, e ficou casado por 50 anos. Orgulhava-se de dar suas voltinhas - tinha sempre, nas viagens, uma "sobrinha" que o acompanhava. Quase nunca a mesma "sobrinha" - mas manteve o casamento.

Também nunca foi dado a excessos: fumou durante pouco tempo e abandonou. Bebida, pouquíssima, socialmente, raramente. Virar noite na farra, jamais. "Malandro é isso", explicava. "O malandro de verdade é o cara que entra na boate, escolhe a dama, espera que o cara que está com ela fique bêbado e colhe os frutos". Por coisas assim, algumas vezes foi Moreira da Silva chamado de malandro de fancaria: tudo nele seria marketing, fruto de imagem construída com persistência e consciência.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Já foi escrito que aquele malandro de terno branco nunca existiu, mas vejam as fotos de contemporâneos de Moreira tao díspares quanto Noel Rosa Geraldo Pereira, Madame Sata. Existia o figurino. Moreira da Silva sobreviveu aos outros, tornou-se o dono do tipo. Chico Buarque utilizou-o em sua "Opera do Malandro". Mas explicava que a roupa - exatamente igual à usada por Moreira da Silva - se inspirava tanto no cantor quanto na entidade do sincretismo religioso afro-católico Zé Pelintra: um malandro, ele próprio, palavra usada com o mesmo sentido aplicável a Moreira.

Esse malandro nao tem nada a ver com aquele que nao trabalha, indolente, desonesto. O malandro de Moreira é outra coisa: veste-se bem, tem boas maneiras, fala corretamente, nao perde a pose, nao toma porre, nao abusa da confiança de ninguém, defende as causas justas, é amigo das mulheres e companheiro apenas de seus iguais; é respeitado pela elegância, pela verve, pelo conhecimento da vida que alardeia sempre; evita brigas, nao implica, nunca insulta. "O bom malandro é o que ri por último" costumava dizer o cantor.

Ele gravou pela primeira vez em 1931, pela Odeon, cantando "Ererê" e "Rei da Umbanda", pontos de macumba de autoria de alguém chamado Amor. No rótulo do disco aparecia: intérprete, Antônio Moreira Mulatinho - conseguiu dizer nao a outra proposta da gravadora, que pretendia chamá-lo de Mulatinho da Assistência. Lembrando, as ambulâncias eram chamadas de assistências. Mas só três anos e dois discos depois foi fazer sucesso, com o samba "Arrasta a Sandália", de Aurélio Gomes e Baiaco.

Para o carnaval de 1933, gravou "É Batucada", de Caninha e Visconde de Bicoíba, vencendo o concurso oficial de músicas carnavalescas do Rio. Para o do ano seguinte, gravou "Agora é Cinza", de Bide e Marçal (que Mário Reis já havia gravado, mas como nao gostava de participar de concursos, nao foi defender a música; Moreira aceitou a empreitada e ganhou mais um carnaval).

O sucesso nao parou. Alguns pontos: em 1935, já Moreira da Silva, brilhou com "Implorar", de Kide Pepe, Germano Augusto e J. Gaspar. Por isso, foi convidado a atuar no prestigioso "Programa do Casé", da Rádio Philips. César Ladeira, outro apresentador de rádio importante, apelidou-o de Moreira da Silva, o Tal, depois de ouvi-lo no Cassino Atlântico. Fez convite e Moreira mudou-se para Rádio Mayrink Veiga.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;