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O homem do hipermercado
Rodolfo de Souza
28/04/2016 | 07:00
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O termo hiper por si só já confere ao mercado o imponente status de qualquer coisa exageradamente grande. E o lugar certamente é merecedor do título, uma vez que é onde se pode encontrar de tudo. Produtos comuns, embora, passíveis de conduzir ao entusiasmo os mais afoitos e também os mais contidos consumidores. É de fato o recanto do mundo onde o objeto de desejo faz sucumbir ao consumo o homem que se gaba por ser imune aos apelos da mídia e à sedução do que é belo e gostoso. Da comida farta ao aparelho carregado de sentimento digital, tudo ali é tentação. Come-se com os olhos! É o que a moderna indústria produz, associado ao bem elaborado trabalho publicitário, que lá está à disposição, na prateleira. Basta que se tenha algum poder aquisitivo que lhe possibilite estender o braço para apanhá-lo e, pronto.

Logicamente que o comprador, em momento de comunhão e profundo envolvimento emocional com o produto, não tem como voltar os olhos para a triste realidade de seu país que não concede a todos o privilégio de passar um minuto sequer de sua vida ali, reverenciando, cheio de devoção, o bem a ser adquirido, convenientemente disposto nas gôndolas. Um sem fim de itens ao alcance das mãos e dos olhos de todos os contumazes frequentadores desse ambiente mágico, do qual ele não faz parte. Refiro-me ao sujeito que, logo ali adiante, olha curioso ao redor sem nada compreender.

Penetrara, pois, sem se dar conta, num mundo avesso aos seus anseios, onde anda sem pressa, sem rumo. Sabe que naquele santuário erigido ao consumo nada lhe pertence ou virá a pertencer. Mesmo assim, olha. As pessoas o observam à distância. Temem, por que não, contagiar-se com o vírus da miséria que, provavelmente, tenha respirado o tal homem um dia. Ou que talvez nascera com ele, não se sabe.

O indivíduo sorri um sorriso sem graça como se desse um vexame sorrindo. Uma forma que teria inventado talvez para desculpar-se pelo atrevimento de adentrar aquele recinto exclusivo.

Olha à sua volta e seu olhar perdido perscruta o hipermercado em busca de algo familiar que, por mais ínfimo que seja, possa correr em seu socorro, já que ali tudo lhe parece assustadoramente estranho. Belo, caro e estranho.
Todavia, simula segurança. A mesma que empurra o carrinho cheio de quem vai à frente. Deseja, afinal, que o reconheçam como a um deles.

Isso! Repentinamente, é invadido por uma sensação boa: certamente ali ele não é invisível! Por curiosidade ou por considerá-lo uma ameaça, as pessoas o notam.

Veste uns trapos imundos, carrega uma sacola da mesma forma suja e calça chinelo de dedo tão desgraçado quanto os pés que procura proteger. A dura vida nas ruas, afinal, não lhe permite desfrutar de um banho ou de qualquer outro prazer, a não ser aquele oferecido pela cachaça. Por isso desconhece outras possibilidades com as quais, pela falta de costume, não teria mesmo afinidade.

E, sem saber bem o que fazer, o homem corre para o lado de fora dos caixas e se propõe a empacotar as compras que a mulher vai passando. Esta dirige a ele um olhar que denota uma mistura de surpresa com indignação. Não suporta ver aquilo que acaba de pagar nas mãos repugnantes daquele intruso. Quem o teria deixado entrar? Mas ele prossegue sorrindo. De olho nas moedas que a pessoa acaba de receber de troco, segue meio desajeitado no seu serviço de empacotador.

Finalmente, agredido pela luz daquele ambiente hostil, encontra o caminho obscuro da rua. Desce cambaleante a rampa que rola sob seus pés e se lança de corpo e alma para a bendita liberdade que, por breve momento, teve medo de perder.

* Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blog cafeecronicas.wordpress.com

E-mail para esta coluna: souza.rodolfo@hotmail.com. 




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