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Morre o escritor Joao Cabral de Melo Neto
Do Diário do Grande ABC
09/10/1999 | 18:42
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Um dos maiores poetas contemporâneos brasileiros, Joao Cabral de Melo Neto, autor de "Morte e Vida Severina", morreu neste sábado aos 79 anos em sua residência na Praia do Flamengo, na zona sul do Rio. Cego havia cinco anos, Joao Cabral sofria de depressao crônica. Seu corpo está sendo velado no Salao dos Poetas Românticos da Academia Brasileira de Letras (ABL), onde ocupava a cadeira 37, cujo patrono era o inconfidente Thomás Antônio Gonzaga. O sepultamento será neste domingo (10), no Mausoléu dos Imortais do Cemitério de Sao Joao Baptista em Botafogo.

Definindo-se há décadas como ateu ou agnóstico, Joao Cabral morreu exatamente quando rezava de maos dadas com a mulher, Marly de Oliveira. Segundo relato de familiares, o poeta durante a oraçao, simplesmente suspirou mais forte, e sua cabeça pendeu para o lado: estava morto.

Até o fim da tarde, ainda nao fora anunciada oficialmente a causa da morte. Diplomata aposentado desde 1990, Joao Cabral, por causa da cegueira, vivia triste e recluso, tendo contato, nos últimos anos, apenas com familiares e amigos mais próximos.

"Ele estava muito infeliz e queixava-se amargamente da escuridao, mas, mesmo assim, produzia e tinha uma veia poética em plena forma", disse, muito emocionada, a escritora e amiga Rachel de Queiroz. "Acho que a obra do Joao e do (Carlos) Drummond foram sementeiras, que vao produzir novos poetas."

O acadêmico Tarcísio Padilha classificou Joao Cabral como um poeta franciscano. "Ele viveu sem ostentaçao, nunca cedeu à vaidade, mesmo sendo um homem de projeçao e de sucesso" disse ele. "Viveu a simplicidade até o fim, e é por causa disso que, ao contrário do que pensava, ele estava muito próximo de Deus."

Outro integrante da Academia, Josué Montello, disse sentir um "vazio muito grande" pela morte de quem considera "a mais alta figura da poesia brasileira". "O seu desaparecimento nos traz um consolo: a releitura natural de sua obra."

Vida - Joao Cabral de Melo Neto nasceu no Recife em 20 de janeiro de 1920, em uma família de senhores de engenho. Passou a primeira infância no interior, em fazendas de cana-de-açúcar, em meio ao ambiente social de pobreza do Nordeste, onde conviveu com a seca, o povo miserável e os romances de barbante (folhetos de cordel), que o inspirariam para escrever "Morte e Vida Severina", sua maior e mais conhecida obra.

Segundo o professor de literatura e escritor Frederico Barbosa narra em "Estudo de 'Morte e Vida Severina'", o poeta evocaria essa época de contato com o povo pobre e a literatura popular em "Descoberta da Literatura", poema publicado no livro "A Escola das Facas (1980): "No dia-a-dia do engenho / toda a semana, durante, / cochichavam-me em segredo:/ saiu um novo romance. / E da feira do domingo / me traziam conspirantes / para que os lesse e explicasse / um romance de barbante (...)"

Repreendido pela família rica por ler cordel para os trabalhadores pobres, foi morar aos 10 anos de idade em Recife. Na capital pernambucana, jogou futebol no Santa Cruz - o esporte foi uma paixao que o acompanhou até o fim - e cursou o primário no Colégio Marista.

Desse período, recordou no poema "As Latrinas do Colégio Marista do Recife": "Nos Colégios Marista (Recife), / se a ciência parou na Escolástica, / a malvada estrutura da carne / era ensinada em todas as aulas, / com os vários creosotos morais / com que lavar gestos, olhos, língua; / à alma davam a água sanitária / que nunca usavam nas latrinas."

Funcionalismo - Aos 17 anos, Joao Cabral virou funcionário público. De 1937 a 1945, ocupou cargos burocráticos, primeiro no Recife, depois no Rio, onde se estabeleceu em 1943.

Em uma carta a Carlos Drummond de Andrade, Joao Cabral expôs, num poema sem título que ficou inédito por mais de meio século, o que pensava da burocracia: "Difícil ser funcionário / nesta segunda-feira. / Eu te telefono, Carlos, / pedindo conselho. / Nao é lá fora o dia / que me deixa assim, / cinemas, avenidas / e outros nao-fazeres. / É a dor das coisas, / o luto desta mesa; / é o regimento proibindo / assovios, versos, flores. / Eu nunca suspeitara / tanta roupa preta; / tao pouco essas palavras / funcionárias, sem amor. / Carlos, há uma máquina / que nunca escreve cartas; / há uma garrafa de tinta / que nunca bebeu álcool. / E os arquivos, Carlos, / as caixas de papéis: / túmulos para todos / os tamanhos de meu corpo. / Nao me sinto correto / de gravata de cor, / e na cabeça uma moça / em forma de lembrança. / Nao encontro a palavra / que diga a esses móveis, / se os pudesse encarar... / fazer seu nojo meu... / Carlos, dessa náusea / como colher a flor? / Eu te telefono, Carlos, / pedindo conselho."

Em seus tempos de funcionário, nos anos 40, Joao Cabral conheceu Willy Lewin, intelectual a quem o próprio poeta atribuía grande influência sobre sua formaçao intelectual, e ingressou na literatura, com o lançamento, em 1942, do seu primeiro livro: "A Pedra do Sono".

Na mesma época que conheceu alguns dos mais importantes poetas brasileiros da geraçao de 1930: Murilo Mendes, Jorge de Lima, Vinicius de Moraes e o próprio Drummond, a quem dedicou seus dois primeiros livros (o segundo foi "O Engenheiro", de 1945).

Aprovado no concurso para o Itamaraty em 1945, o poeta correu mundo, mas antes casou-se, em 1946, com Stella Maria Barbosa de Oliveira, que seria mae de seus cinco filhos. Em 1947 foi servir na representaçao diplomática brasileira em Barcelona onde conheceu o pintor Miró.

Lá também montou uma tipografia artesanal, que usou para lançar livros de poetas espanhóis e brasileiros, inclusive obras suas: "Psicologia da Composiçao" (1947) e "O Cao Sem Plumas (1950)."

Transferido para Londres em 1950, ficou na capital britânica somente até 1952, quando foi colhido pelo furacao do anticomunismo que marcou a Guerra Fria e pelos reflexos, no Brasil, do macartismo norteamericano.

Acusado de subversivo e comunista, voltou ao Brasil, permanecendo no país até 1956. Nesse período, acrescentou à sua poesia os temas sociais, em poemas como "Morte e Vida Severina" (1955), em que narra a vida do nordestino miserável, expulso de sua terra pela seca e pelo latifúndio.

Encenado em 1966 pelo Tuca (Teatro da Universidade Católica de Sao Paulo), o auto de Natal, com músicas de Chico Buarque, conquistou o maior prêmio do Festival do Teatro Amador de Nancy, França.

"Nao escrevi "Morte e Vida Severina para intelectuais", disse Joao Cabral certa vez a Vinicius de Moraes. "Escrevi para os sujeitos analfabetos que ouvem cordel na feira de Santo Amaro, no Recife." Ele contou que a obra foi resultado de uma encomenda de Maria Clara Machado, que lhe pediu um auto natalino. O sucesso foi mundial, mas o poeta se mostrou, algumas vezes, contrariado com a "burrice nacional".

"Acho que queriam que, ao fim de cada espetáculo, eu subisse ao palco e gritasse: 'Viva a reforma agrária'."




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