Economia Titulo Entrevista
Região prestes a se tornar o berço da Defesa

Soraia Abreu Pedrozo
Do Diário do Grande ABC
08/09/2015 | 07:02
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Celso Luiz/DGABC


Em visita ao Diário, o ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, defende que o Grande ABC tem potencial para capitanear o desenvolvimento do setor da Defesa no País. “O objetivo da região deve ser superar o paradigma da indústria automotora das montadoras e virar palco de um novo paradigma de produção no Brasil. É isso que permitirá ao Grande ABC sinalizar novo caminho para o País”, disse, em entrevista exclusiva.

Mangabeira Unger já comandou a Pasta entre 2007 e 2009, durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Filósofo, ministrou aulas na Universidade de Harvard para o presidente norte-americano, Barack Obama, e entrou em 2013 para a lista de intelectuais do ano da revista britânica Prospect.

Segundo ele, a região reúne tanto grandes indústrias tradicionais como pequenas empresas, o que é grande vantagem, além de ter um dos requisitos essenciais para migrar do fordismo tardio – produção em grande escala de bens e serviços –, para o pós-fordismo – conhecimento e inovação: o capital social.

O ministro afirmou que é fundamental investir na Defesa do País para poder dizer ''''''''não'''''''' e seguir independente dos interesses hegemônicos do mundo. “E para poder abrir o rumo de um projeto rebelde de desenvolvimento nacional.”

Confira entrevista abaixo.


Qual a sua avaliação sobre o potencial da indústria da Defesa no Grande ABC?

O Grande ABC foi o berço da industrialização brasileira em meados do século passado. Uma industrialização no estilo daquilo que chamamos de fordismo industrial, isso é, a produção em grande escala de bens e serviços padronizados por maquinários e processos produtivos, mão de obra semi especializada e relações de trabalho muito hierárquicas e especializadas. Exemplo é a indústria automotriz, tradicional, que alcançou padrões de excelência fabril, mas ela é relativamente retrógada no seu cerne tecnológico e de práticas. Está sendo superada nas economias avançadas do mundo por novo paradigma de produção, densa em conhecimento, flexível, descentralizada, customizada e voltada para a inovação permanente. A grande maioria da força de trabalho, mesmo nas economias mais avançadas, está excluída dessas vanguardas de produção. É um estilo de industrialização que se poderia chamar no Brasil de fordismo tardio, em alusão às linhas de montagem de Henry Ford na indústria de automóveis, e não é o caminho do futuro. Temos duas grandes tarefas no Brasil em matéria de reconstrução da nossa indústria. Uma é conhecida, acelerar a superação desse paradigma produtivo, o fordismo tardio, rumo ao novo paradigma da economia de conhecimento. O outro é organizar travessia direta do pré ao pós fordismo, sem passar pela etapa intermediária do fordismo industrial. O País todo não deve ter de penar no purgatório do fordismo tardio para depois virar outra coisa. E o Grande ABC oferece condições excepcionais para cumprir ambas as tarefas, pois aqui existe tanto o Brasil da grande indústria tradicional como o das pequenas empresas relativamente primitivas. A região tem um dos requisitos mais importantes para essa travessia, que é o capital social, uma rede densa de vida associativa. E pode providenciar o outro requisito, que é uma educação técnica avançada, a formação de recursos humanos. Um dos terrenos privilegiados para o vanguardismo produtivo é a indústria de Defesa, que em todo o mundo é um contexto para o avanço tecnológico e produtivo. É, portanto, muito natural, que os prefeitos e as organizações empresariais aqui procurem construir uma nova vantagem comparativa nesta área.


Como a região deve fazer para avançar no desenvolvimento da indústria de Defesa?

Entendo que, para que alcancem esse objetivo, devem tomar três conjuntos de iniciativas. Em primeiro lugar, facilitar a localização física das cadeias produtivas da indústria de Defesa, a começar pela aeroespacial. Em segundo, avançar no novo modelo de educação técnica, que não deve ser aquele tradicional, alemão, que copiamos no Brasil, de ensinar ofícios rígidos e profissões convencionais pelo uso das máquinas tradicionais, como os tornos. Deve ser educação técnica avançada que ensine as capacitações flexíveis e genéricas, chamadas de metacapacitações, exigidas por tecnologias contemporâneas, como são as impressoras 3D. Em terceiro, o poder público, os prefeitos associados, precisam organizar centros ou laboratórios, chamados em muitos países de fablabs, laboratórios de fabricação em manufatura aditiva, que disponibilizem tecnologias contemporâneas, como as impressoras 3D, a baixo custo, para empresas pequenas e médias de vanguarda. É um grande caminho para a região, e o melhor instrumento para essa trajetória é a cooperação federativa horizontal. Daí a importância do consórcio (Intermunicipal do Grande ABC) dos prefeitos que eu conheci.


O senhor acha que o fato de a fabricante sueca Saab ter escolhido São Bernardo para sediar a SBTA (São Bernardo Tecnologias Aeronáuticas) e construir parte das aeroestruturas do Gripen NG é um pontapé inicial?

Esse é um ponto de partida de grande potencial, mas é apenas um entre muitos que poderiam ser aproveitados. O grande alvo tem que ser chegar a um patamar de concentração de atividades no complexo industrial da Defesa, a partir do qual se ganha uma dinâmica espontânea. Difícil é dar o primeiro passo e chegar a esse patamar. Mas eu observo que os prefeitos já estão focados nessa tarefa. A verdade é que a estratégia nacional de Defesa, de cuja elaboração eu participei intensivamente em 2008, já contempla a organização da produção pública e da privada. O que ali se desenha, para o Estado, é que ele produza apenas na ponta, em associação com a pesquisa avançada, mas não é o que tem existido tradicionalmente na produção bélica do Estado brasileiro, que fabrica material relativamente elementar, por exemplo, na Imbel (Indústria de Material Bélico do Brasil, vinculada ao Ministério da Defesa), no Rio de Janeiro, e conduz pesquisa avançada no centro tecnológico do Exército sem vazão produtiva. Há uma desconexão entre a pesquisa e a produção. Produção primitiva e pesquisa avançada sem desfecho produtivo. A outra grande linha prevista na estratégia nacional de Defesa é que nós construiríamos um regime jurídico especial para as indústrias do setor. Esse regime eximiria as empresas privadas das regras do regime geral de licitações, mas, em troca dessa isenção, daria ao Estado poder estratégico nas empresas privadas de Defesa. Quer por instrumentos de Direito público, como um marco regulatório, ou de Direito privado, como o goldenshare (poder de controle ou veto do Estado nas empresas privadas).


Mas o marco regulatório e o goldenshare ainda não estão em prática.

A verdade é que esse desenho ainda não foi efetivado. E eu entendo essa ação aqui na região como um esforço dos prefeitos para tomarem a tarefa em suas próprias mãos, e não apenas aguardarem a construção nacional desse complexo industrial da Defesa. Há um contexto maior para tudo isso, a construção de novo modelo de desenvolvimento no Brasil. O modelo não pode mais se basear primordialmente no consumo e em commodities mas, ao contrário, em qualificação da produção, com democratização das oportunidades produtivas de um lado, e em fortalecimento das capacitações educacionais de outro. Esse novo modelo regional só vai se efetivar na prática por uma ação regional, que só será vigorosa se for construída de baixo para cima, pelas próprias regiões, e não apenas de cima para baixo, pelo governo federal. Esse é o sentido da ação aqui no Grande ABC.


Como funcionariam na prática o marco regulatório e o goldenshare?

Isso é o que existe em muitos países. As empresas privadas da Defesa, como estão tratando de algo crítico – a Segurança nacional –, não podem seguir as regras comuns de licitação. Mas o Estado tem um poder decisivo nessas companhias, seja pelo marco regulatório ou pelo goldenshare, mesmo sendo muito minoritário nessas empresas. Ao mesmo tempo, o Estado deve atuar diretamente na produção de Defesa, mas só na ponta, não no chão, sempre em atividades de produção avançada, diretamente vinculadas à pesquisa avançada. Agora, eu direi com franqueza. Seria um erro imaginar que devamos estar na indústria da Defesa apenas por motivos econômicos. Mas para defender o País. Não devemos querer ter uma Defesa de arremedo, que as Forças Armadas brasileiras sejam apenas uma força policial, que mantêm a tranquilidade na América do Sul a serviço de outra grande potência. Mas para defender o Brasil. E nós não queremos viver num mundo em que os leigos estão desarmados e os beligerantes estão armados até os dentes. Precisamos nos defender para poder dizer não. E para poder abrir o rumo de um projeto rebelde de desenvolvimento nacional. Ter independência. Esta é a razão maior para organizar o complexo industrial da Defesa. Senão, teremos de obedecer aos interesses hegemônicos do mundo. Veja o caso do ajuste fiscal. O verdadeiro intuito não é ganhar a confiança financeira, como se trouxesse investimento e crescimento. É o oposto, assegurar que o governo não dependa da confiança financeira e ter margem de manobra para construir outra estratégia de desenvolvimento.


Quais mudanças estruturais devem ser tomadas para viabilizar o segmento da Defesa?

Essa é um caminho que eu entendo ter três grandes agendas. A primeira é produtivista. O fomento do empreendedorismo de vanguarda, sobretudo da empresa de médio porte. A chave é combinar o acesso a crédito com práticas e tecnologias avançadas e mercados mundiais. A segunda é capacitadora. O ponto crítico é uma nova escola média geral e técnica. A geral deve colocar competências analíticas no lugar de decoreba e enciclopedismo raso. E a técnica deve dedicar-se às metacapacitações demandadas pelas tecnologias contemporâneas. A terceira é de gestão pública, onde o ponto crucial é o experimentalismo na provisão de serviços públicos, como Educação, Saúde e Segurança, e no desenvolvimento de parcerias com empresas privadas, sobretudo pequenas e médias nesse novo vanguardismo pós-fordista. É aí que surge o complexo industrial da Defesa, um terreno privilegiado, entre outros, para o encontro entre essas três agendas. Perseguindo-as, no terreno fértil da Defesa, o Grande ABC pode ajudar a sinalizar um caminho para o País. E, desta forma, o berço do projeto anterior pode ser também o berço do projeto seguinte. O requisito essencial para se alcançar esse objetivo é o casamento da rebeldia com a imaginação.


O senhor acredita que o fato de o Grande ABC possuir farta experiência no setor automotivo pode ajudar no desenvolvimento da indústria da Defesa?

Sem dúvida. Pois é mais fácil passar do fordismo tardio para o pós-fordismo do que saltar diretamente do pré-fordismo para o pós-fordismo. Ademais, esse parque industrial estabelecido foi acompanhado pela organização do Ensino Técnico de um lado e pelo aprofundamento de vínculos associativos, o que chamamos de capital social, do outro lado. E esses são instrumentos muito poderosos para a facilitação do vanguardismo produtivo. Portanto, dentro do Brasil, a região excepcionalmente favorecida para andar na ponta. Mas, como eu disse, é preciso ter audácia e imaginação. Precisa resistir à inércia e não contentar-se com as vocações produtivas existentes, insistir em construir novas vocações. A indústria de Defesa não é uma panaceia. É apenas uma área que pode favorecer esse novo vanguardismo. Mas o alvo não deve estar apenas na indústria de Defesa, e sim no fortalecimento das capacitações educacionais e empreendedoras que terão na indústria de Defesa uma das suas expressões.


Para isso, é fundamental que as sete prefeituras ajam também, porque a iniciativa privada não consegue sozinha.

Exato, por isso eu dizia que esses elementos da transformação exigem colaboração e coordenação estratégicas entre governo e empresa sem preconceitos ideológicos. Vejo que o que se trata de fazer é a reinvenção da economia de mercado em dois grandes eixos. Um deles é a relação entre governos e empresas. Existem dois modelos no mundo: o americano, de um Estado que apenas regula as empresas a distância, e o do Nordeste asiático, de formulação de uma política industrial unitária, imposta de cima para baixo, pela burocracia do Estado. Para disseminar o vanguardismo, e para fora das fronteiras das vanguardas tradicionais, nós precisamos de um terceiro modelo. Uma forma de coordenação estratégica que seja pluralista, descentralizada, participativa e experimental. O outro grande eixo é o horizontal, a relação entre as empresas. Se trata de construir regime de concorrência cooperativa, quer dizer pequenas e médias empresas que fazem mutirão de recursos tecnológicos, comerciais e financeiros, ao mesmo tempo em que continuam a competir umas contra as outras.


Quando a Saab decidiu construir a SBTA em São Bernardo, houve muitas críticas e questionamentos de por que não estabelecê-la em São José dos Campos. O que o senhor acha disso?

Eu acho que aqui existe uma grande vantagem. Justamente por não ser uma área estritamente especializada em Defesa, por ter grande variedade de atividades industriais e de tipos de formação de mão de obra. Daí que há espaço para construir as novas vantagens comparativas amplamente. Eu defendi há muito tempo a opção Gripen NG no projeto FX-2 justamente por ele não ser uma plataforma pronta, comprada da prateleira. Havia muita crítica de que esse avião não existe, e eu dizia que não existir era justamente sua principal virtude. A única maneira de aprender é fazer. Nós não compramos um projeto pronto, organizamos uma parceria com a Saab para desenvolver um novo caça e o desenvolvimento dele no Brasil, não só para o Estado brasileiro, mas para o mercado mundial, o que é uma oportunidade excepcional de desenvolver novas capacitações. E São Bernardo tem a grande vantagem dessa densidade produtiva e associativa, que permite desenvolver este e outros projetos no complexo industrial da Defesa sem estar confinado no nicho de especializações rígidas. É um grande campo, mas agora precisa haver ação arrojada para aproveitar esse potencial.


Inclusive, a Saab frisou desde o início que o objetivo é que o Brasil se torne plataforma produtora e exportadora para a América Latina.

Esse é o objetivo desde o início, mas não só para a América Latina, como para muitas regiões do mundo. O problema clássico na indústria de Defesa é a escala, o que só se resolve por venda ao mercado mundial. Agora, eu vejo a vantagem comercial como uma condição e uma facilitação. Não é o objetivo maior. Embora possa ser da empresa, da Saab e da Embraer, ganhar dinheiro vendendo, nosso objetivo como País, e do Grande ABC como região, não é apenas lucrar, mas capacitar-se. É virar agente desse novo vanguardismo produtivo. Isso é muito mais importante. E aí a participação no projeto Gripen NG, em vez de ser o fim, será apenas o meio. Um dos meios para alcançar esse fim maior. Insisto na minha tese de que o foco não deve estar apenas na indústria da Defesa, mas na superação do paradigma industrial estabelecido, que já está sendo superado no mundo por uma nova prática de produção do conhecimento, descentralizada, customizada e sobretudo vocacionada para a inovação permanente. Isso faz com que as melhores empresas se assemelhem às melhores escolas, dilui a diferença entre elas. Isso é um dínamo de produção e capacitação. Ter isso aqui é o verdadeiro objetivo, e o cultivo da indústria da Defesa é apenas o meio circunstancial. Outros haverão de aparecer. O objetivo da região deve ser superar o paradigma da indústria automotora das montadoras e virar palco de um novo paradigma de produção no Brasil. É isso que permitirá à região sinalizar novo caminho para o País.


Existe algum apoio do governo federal para estimular o desenvolvimento da indústria da Defesa na região?

Já está contemplado na estratégia nacional da Defesa fazer do complexo industrial da Defesa uma ponta do vanguardismo. Como ocorre no resto do mundo. Um ponto-chave é entender que o acesso a crédito não basta, se não for combinado com acesso a tecnologias, a práticas avançadas e a mercados mundiais. Esse é o ponto de partida. O de chegada é, de um lado, aquele novo marco institucional e concorrência cooperativa que citei anteriormente. Visto de outro ângulo, é nova cultura industrial, caracterizada pelo experimentalismo radical. O foco deixa de ser o manejo de máquinas rígidas e passa a ser o domínio de capacitações genéricas. É uma revolução. Precisamos no Brasil de visionários práticos. É fácil ser realista quando se aceita tudo. E é fácil ser visionário quando não se enfrenta nada. O caminho é enfrentar muito e aceitar pouco.


O senhor acha que leva quanto tempo para que essas mudanças sejam implementadas?

Eu nunca sei. E não me preocupa quanto tempo leva. Só quando começa, não quando termina. Porque é o início da dinâmica que determina a correnteza, como um rio poderoso, uma cachoeira, superando todos os obstáculos pela sua força interior. É isso o que eu quero no Brasil.




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