Cultura & Lazer Titulo
Sons de Recife
Gislaine Gutierre
Enviada a Recife
26/12/2006 | 19:58
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No alto do morro, no bairro Alto José do Pinho, em Recife, uma bandeira azul com uma estrela branca tremula soberana. No quintal de frente daquela casa simples, caiada, reúnem-se homens, meninos, moças, crianças. Tanta gente que mal cabe a platéia afoita. E é de lá que sai o som centenário da Nação Estrela Brilhante, grupo de maracatu criado há exatamente um século.

Estrela Brilhante e Alto José do Pinho são parte de uma mesma grande matriz cultural que vem derrubando fronteiras e conquistando ouvidos, corações e mentes. É dali, das quebradas de Recife, dos morros e da mata Pernambucana, que nasce uma das músicas mais criativas dos últimos tempos no Brasil. Um som que surge da criatividade, do suor, da entrega, do respeito à tradições. Um som genuinamente popular, que continua a brotar no caos urbano dessa contraditória capital.

Chico Science sem dúvida foi essencial na produção e difusão da música pernambucana. Quinze anos após o início da revolução manguebeat, o Estado continua sendo grande manancial criativo.

Os autênticos artistas locais são tanto os mestres como Salu e Nunes quanto os “caranguejos do mangue com antenas para o mundo”, Silvério Pessoa e Maciel Salustiano.

Pessoa é a síntese do hibridismo entre tradição e contemporaneidade. Este ano, venceu o Prêmio Tim na categoria melhor cantor regional, com o disco Cabeça Elétrica, Coração Acústico. Um disco coeso, cheio da poesia agreste, mas com uma linguagem contemporânea. Há convidados ilustres, como Dominguinhos, Alceu Valença, Lula Queiroga e Lenine.

Pessoa se inspirou numa frase de Chico Science para lançar-se solo: “Ele disse, faça o que você é que dá certo”. E ele seguiu o fluxo natural da música pernambucana – do interior para a capital. “Hoje sou urbano, faço frevo com reggae, com dub. Me incomoda isso de só multiplicar (a tradição). Procuro o hibridismo”, diz. Também preocupa o artista a sazonalidade que engessa o frevo, levando-o a ter espaço somente no Carnaval.

Às vésperas de o ritmo completar 100 anos, Silvério acredita que ele está mais vivo que nunca. Principalmente por influência de Chico Science, que trouxe de novo à baila as tradições musicais, e ao trabalho do maestro Spok à frente de sua orquestra. No Carnaval, será com frevo que ele fará sua participação. No sábado, dia 17, ele comandará o La Ursa Elétrica, quando se juntará à orquestra para animar a festa.

Este mês lançará o DVD de Cabeça Elétrica, Coração Acústico e se prepara para desembarcar em São Paulo, para um show no dia 31 de março, no Sesc Pompéia.

Três gerações - Outro que ultrapassa as fronteiras da tradicão é Maciel Salustiano. Terceira geração de uma família capitaneada por João Salustiano, 89 anos, e “fertilizada” pelo reverenciado Mestre Salu, 61 anos, do maracatu Piaba de Ouro, desde cedo ele convive com as mais fortes raízes culturais de seu Estado. Aprendeu a respeitá-las e dominá-las.

Em seu novo disco, Maciel Salu e Terno do Terreiro – Na Luz do Carbureto, o cantor, compositor e rabequeiro deságua em poesia todo seu rico histórico de convivência com os mestres. “Meu pai sempre nos incentivava a brincar”.

As letras de seu álbum falam de uma tradição viva, Naquela Serra, com música sua, traz a letra tradicional do cavalo marinho (Em cima daquela serra/ Tem um velho gaioleiro/ Quando vê moça bonita/ Faz gaiola sem ponteio...).

A delicada guitarra na introdução de Capeô pode até causar estranhamento – ‘ué, não é um disco de música tradicional?’. Não. A canção, cheia de batuques e com baixo acústico, é uma homenagem à tribo dos índios TriboFuniô, de Águas Claras (PE).

Maciel destaca a parceria realizada com o DJ Dolores na Orquestra Santa Massa, que lhe rendeu shows memoráveis em nove países europeus e em eventos como o Free Jazz paulistano. “Meu trabalho não é só raiz, tem percussão, drum’n’bass, guitarra, baixo”, diz. E que ninguém conteste sua habilidade de rabequeiro (vide a instrumental Forró do 7º Dia).

“Ele tem a voz parecida com a minha” afirma o pai, coruja. Mestre Salu tem motivos para se orgulhar da prole. Diz, sem modéstia, que “não pesquiso (música), eu sou pesquisado”.

Também, pudera. Mestre Salu bebe na fonte da cultura popular desde criança. Aos sete anos, já era brincante assíduo nos cavalos marinhos de Aliança (PE), sempre levado pelo seu pai, João Salustiano. “Minha mãe dizia, ‘esse menino é muito pequeno pra passar a noite com ele (o pai)’, e na volta a gente chegava no rio, eu tomava banho, depois tomava leite de cabra com farinha de mandioca, já pensando no outro sábado. Ficava alegre e feliz, porque o que eu queria era cantar e dançar”.

Mestre Salu ganhou o título com muito trabalho e respeito dos colegas. Diz que já fez os mais de 70 personagens do cavalo marinho e hoje conduz o folguedo, com 63 partes e duração de oito horas. Atualmente seu currículo acumula viagens a São Paulo, Rio (no Rock in Rio), Bolívia, Cuba, Estados Unidos e França, onde fez 30 shows. “Minha namorada na época dizia que eu levava vida de desocupado e queria que eu trabalhasse no pesado. Hoje ela diz, ‘você estava certo’”,

Salu é orgulho de João Salustiano, que se derrete diante do filho mestre rabequeiro. Ele participou de um interessantíssimo registro, Família Salustiano – As Três Gerações, que traz cavalo marinho, coco, ciranda, frevo e maracatu. Registro fundamental é Sonho da Rabeca, disco com o maracatu Piaba de Ouro. Este vem com a chancela de Ariano Suassuna, que assina o texto de apresentação do álbum.

“É difícil se manter na tradição. É preciso ter sinceridade e humildade para crescer, porque nariz muito pra frente entorta”, diz Salu. “Eu me sinto muito feliz porque tenho certeza que a cultura popular vai viver por todos os tempos”. (A jornalista viajou a convite da Secretaria Municipal de Turismo de Recife)



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