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Viúva de Fleury fala sobre desaparecimento há 20 anos
Do Diário do Grande ABC
01/05/1999 | 17:00
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Vinte anos depois da morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury, o maior símbolo da repressao no Brasil, sua viúva, Maria Isabel Oppido Fleury lança luzes sobre as circunstâncias do desaparecimento do policial. ``Na época disseram que nao fizeram a autópsia no Fleury por decisao da família. Isso é mentira. Eu nunca fui consultada sobre isso. Quem decidiu nao fazer a autópsia foi a cúpula da Polícia Civil', diz Isabel, que, aos 67 anos, tem vivos na memória, como testemunha ocular, os detalhes do suposto acidente em que Fleury morreu, ao cair no mar em Ilhabela, litoral Norte de Sao Paulo, em 1º de maio de 1979.

O laudo da morte, assinado pelo médico-legista Harry Shibata - o mesmo que certificava morte a tiros em confronto com a polícia de guerrilheiros assassinados sob tortura nos poroes -, atesta que Fleury morreu por afogamento seguido de parada cardíaca. O genro do delegado, o médico Joao Alfredo Castilho, casado com sua filha Beatriz, também o examinou e confirmou à família a versao oficial. Maria Isabel afirma que acredita nos exames feitos por Shibata e pelo genro, mas acha que o mais prudente, para tirar qualquer dúvida, teria sido a polícia seguir os trâmites para situaçoes do gênero. Em caso de morte violenta, acidente incluído, a autópsia é obrigatória.

Isabel afirma que nao poria nenhum obstáculo à autópsia, cuja ausência alimenta dúvidas até hoje. Amado por seus colegas e odiado pela esquerda, Fleury era uma figura polêmica e um arquivo ambulante da repressao. Nenhum outro policial, em qualquer período da história do país, incorporou com tanta convicçao e brutalidade o Estado repressor - tanto contra delinqüentes quanto para ativistas políticos que ousaram desafiar a ditadura militar. A autópsia teria evitado as dúvidas.

Quem tomou a decisao de nao realizá-la foram o entao secretário de Segurança, desembargador Otávio Gonzaga Júnior (falecido), o ex-delegado geral Celso Teles e o entao chefe do IML e diretor do Instituto de Criminalística, Lúcio Vieira. O inquérito policial diz que Fleury caiu na água ao tentar passar para seu barco, o Adriana I, que estava ancorado no píer de Ilhabela ao lado de duas outras embarcaçoes.

Ele voltava de um jantar com a mulher e um casal de amigos e parou no convés da lancha Cabo de Sao Tomé para tomar a última dose de uísque com o grupo de amigos antes de se recolher. Estava feliz, na viagem inaugural do barco que acabara de comprar. Isabel e ele fizeram uma parada de 20 minutos e depois decidiram se recolher ao Adriana I. Fleury ajudou a mulher a passar para o segundo barco, o Patras, e, repentinamente, caiu entre as duas embarcaçoes, despencando de bruços no mar. Estava sendo arrastado por uma correnteza fraca, quando o marinheiro Gilberto José da Rocha, advertido pelos gritos de Isabel, mergulhou, empurrando-o para a superfície. Foi içado do mar com a ajuda dos amigos e permaneceu vivo, segundo Isabel, por cerca de 5 minutos.

Mas nao falou nada durante esse tempo. ``Ele se estrebuchava e se debatia muito', conta Isabel. O delegado vomitava e espumava. Quando o médico Mathuzalém Fagundes Vilela chegou, diz a viúva, o delegado estava morto, mas ele ainda o levou para a Santa Casa de Ilhabela. Era madrugada de 1º de maio de 1979 e, quando a notícia se espalhou, muita gente se perguntava: ``Quem matou Fleury?' Adversários e grande parte dos policiais que trabalharam com ele nao acreditam no acidente. A maioria é adepta da tese de que houve uma conspiraçao de direita para eliminá-lo, embora até hoje nao tenha surgido indício que ampare a suspeita. Apesar dos exageros alimentares e alcoólicos, Fleury era um homem saudável. Um mês antes, havia feito check-up e os exames nao apontaram anormalidade. Era também um bom nadador.

A suspeita é a mesma que a esquerda alimenta. O homem que sabia de todos os segredos da repressao - o destino da maioria dos 154 presos políticos desaparecidos, acordos, barganhas, açoes clandestinas, financiamento da repressao por empresários - nao poderia desaparecer em circunstâncias tao prosaicas.

``Acredito que ele teve um mal súbito e deu o azar de cair na água. Poderia ter caído no convés do barco', diz Isabel, que assistiu a tudo. ``Meu pai era de extrema confiança dos órgaos militares. Jamais o matariam para queimar arquivo', diz o filho de Fleury e também delegado, Paulo Fleury.

``Logo depois do enterro, policiais que trabalhavam com ele desceram para Ilhabela. Vasculharam tudo por lá durante uma semana e nada encontraram. Eu mesmo procuro uma pista há 20 anos, mas até hoje nada encontrei', diz Paulo Fleury. As suspeitas vao de um sofisticado envenenamento a versoes folclóricas, como a de que quando Fleury, empurrado, caiu na água, um homem-ra mergulhou e aplicou em um de seus pés uma injeçao com um mortal líquido russo. ``O Fleury era perseguido diariamente por um detetive inglês - o Johnny Walker', ironiza o delegado Paulo Bonchristiano, que foi do Dops ``Ele bebia duas garrafas de uísque por dia', diz Bonchristiano, que acha plausível a versao do acidente. O filho de Fleury revela que grande parte dos documentos que seu pai guardava num armário do antigo Departamento Estadual de Investigaçoes Criminais (Deic) _ do qual era diretor quando morreu - desapareceu. Foram retirados, segundo ele, por um policial que trabalhava com Fleury no Deic, Carlos Henrique Perrone, que morreu há três anos, de problemas cardíacos. ``Nao sei direito por que os papéis foram retirados. Provavelmente para proteger a polícia', diz Paulo Fleury. Ele lembra que andou atrás da papelada no Deic e descobriu que o investigador havia feito uma triagem nos documentos.

Paulo Fleury diz nao acreditar que seu pai guardasse documentos que pudessem comprometer a repressao. A maior parte das informaçoes estaria na sua memória.




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