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Nelson de Oliveira lança "Subsolo Infinito"
Do Diário do Grande ABC
18/02/2000 | 15:05
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A literatura contemporânea parece movida por uma fobia grave: a dos clichês. Todo o esforço dos escritores hoje, toda a concentraçao, em particular a daqueles que se iniciam, parece deter-se na fuga impaciente das frases feitas, dos chavoes, das idéias recebidas. O que corresponde, em princípio, a um desejo de autonomia, de ineditismo, à vontade legítima de dar forma ao que nunca existiu, mas pode também transformar-se (e em geral se transforma) só numa perseguiçao vazia, ainda que sofisticada, ela mesmo se tornando o grande clichê da escrita literária nessa virada de século.

O vazio, na verdade, é a marca da literatura nesse limite de milênio e a questao nao é negá-lo, ou, ao contrário, adotá-lo como soluçao, mas sim decidir que destino lhe dar. Outro sinal contemporâneo é o recurso, dito pós-moderno, da repetiçao (uma espécie de grande hipérbole a devastar as narrativas com seus exageros eruditos), atitude que conduz aos relatos cheios de referências sutis, de citaçoes ocultas, de paralelos a ser decifrados. Essa é uma característica do que se pode chamar de "literatura universitária", aquela que se afirmou depois do boom da teoria literária, que foi o grande gênero brasileiro nos anos 70 e 80.

Nos 90, com o retorno à ficçao, muitos escritores nao souberam, contudo, superar esse elo maníaco com o saber teórico, passando a fazer uma "literatura para professores", a ser esmiuçada em teses, em seminários, a ser decifrada - e nao lida.

Essas duas consideraçoes sao importantes para entender tanto as muitas qualidades, como os impasses, propostos por "Subsolo Infinito" (Companhia das Letras, 213 páginas, R$ 23), a primeira novela do escritor paulista, já conhecido por seus estupendos contos, Nelson de Oliveira.

Ele nao se afasta das questoes postas pela literatura de seu tempo, nao adia o impasse dando um salto convulsionado para a frente, nem recua para evitá-lo. Enfrenta-o, e por isso escreveu um belo livro.

Em "Subsolo Infinito", Nelson de Oliveira faz, sim, muitas homenagens, a Kafka, de quem toma emprestada para reformar a idéia da metamorfose, a Goethe, com a retomada do tema da alma cedida ao Diabo, especialmente a Homero pois, de um modo muito particular e original, ele se propoe a reescrever a "Ilíada". Uma "Ilíada" suja, contudo, passada nas sarjetas de Sao Paulo, entre mendigos, psicopatas, homens à beira da morte, gangues criminosas, mas que nem por isso perde seu aspecto mítico, ainda que reatualizado em um diapasao nada convencional.

Na novela de Nelson de Oliveira, o narrador, Antônio Figueiredo de Alcântara Bezerra, também desce aos infernos para chegar até Ilion (que, na verdade, é o outro nome de Tróia). Enfrenta espectros, monstros de natureza incompreensível, situaçoes que nao pode entender, personagens que se transmutam, tudo para vingar-se de um velho amigo, Edu, e recuperar um novo amor, Maria José Maria, uma espécie muito perturbadora de hermafrodita.

Talvez aqui se possa ver também uma homenagem à Virginia Woolf que escreveu "Orlando", personagem que, mais que hermafrodita, é ora mulher, ora homem, ora mulher novamente, sem jamais se deixar enquadrar num só gênero.

"Subsolo Infinito" tem, no entanto, a estrutura de um pesadelo, aspecto que a aproxima das narrativas surrealistas, como as de Campos de Carvalho, de quem o autor toma uma epígrafe; ou, apesar do hiato em que ficaram lançados os anos 70 do esquecido José Agrippino de Paula e seu "PanAmérica". Como nos pesadelos, personagens e objetos estao condensados, ou expandidos, ou deslocados, ou substituídos; a lógica já nao vigora, o que mescla as identidades; o tempo é circular, girando em grande transtorno, levando sempre a direçoes imprevistas.

Todas as referências, entao, se submetem a uma grande atraçao, uma espécie de estupor, em que nada é mais o que é. Estado com que o próprio narrador se choca e do qual só parece se dar conta em raras vezes, como no momento em que diante de sete obeliscos, dispostos de tal forma que, de onde quer que os olhasse, apenas seis eram visíveis, ele conclui: "O propósito disso era muito simples: recordar, a todos os que porventura passassem por ali, as limitaçoes dos sentidos".

Do mesmo modo, a grande descida ao subsolo infernal, preço a pagar por um pacto que o narrador faz com o Demônio, vem também apontar para essa incompletude, que atinge nao só os personagens, mas também o leitor e, afinal, toda a literatura - para nao falar da vida humana. Há, em todas essas mutilaçoes, um aspecto infinito, que se repete e se repete, e por isso a novela de Nelson de Oliveira pode reescrever Homero, pode simular Kafka (em particular na primeira parte, que parece anunciar um romance que, na verdade, o autor nao chega a escrever), pode reduplicar Goethe ou Thomas Mann com seus Faustos, sem que esteja lidando com cópias, duplos ou falsificaçoes.

Pode até fazer o jogo vazio dos surrealistas (que resultou, na prática, numa literatura fracassada), porque dele emergirá sempre uma escrita cheia - daí a profusao de sangue, fezes, vômitos, odores fétidos, corpos putrefados, ulceraçoes, cheiros de morte que percorrem toda a narrativa.

O heróico associa-se ao sórdido; ao fabuloso, alia-se sempre o repulsivo. Nada pode se separar. Na verdade, Nelson de Oliveira escreveu seu livro em ritmo de turbilhao - aspecto em que ele se assemelha a "Teatro", o romance mais recente, e bastante inferior, de Bernardo Carvalho, escritor só um pouco mais velho que ele.

Pois, enquanto escritores como Carvalho tendem sempre a jogar e jogar, arrastando o leitor para seus passatempos paranóicos e efetivamente sem saída, Nelson de Oliveira, mesmo tropeçando aqui e ali em alguns excessos (a insistência com os gregos, por exemplo) consegue escapar dessas combinaçoes pervesas para descer alguns degraus, chegando a um subsolo onde, sob a aparente desordem e arbitrariedade da imaginaçao, surgem aqui algumas larvas, ali algumas labaredas, mais à frente alguns sinais de sangue, elementos primitivos, quase brutos, que reconectam contudo o sonho ao real. Nao o real dos naturalistas, engajado, sociológico, simplificado, mas o real tal qual ele é: fervente, intempestivo, convulso, espaço no qual, por fim, a vida transcorre.

A novela de Nelson de Oliveira vem anunciar, assim, a possibilidade, que parecia quase perdida, de uma reconexao da literatura com a realidade, nao de modo esquemático, professoral patético, mas satisfeito e até feroz. "Subsolo Infinito" é um livro que se lê atordoadamente, porque, se ele arrasta o leitor para um sonho aflitivo, também nao permite que ele se esqueça de que, por baixo de tudo aquilo, há sempre a vida que se move.




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