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Lembranças de um ex-menino de rua
Por Danilo Angrimani
Do Diário do Grande ABC
10/07/2005 | 09:28
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"Era menino da rua. Guardava carro, engraxava sapato na praça Lauro Gomes, em São Bernardo. Um dia, um sujeito me deu um tapa na cara. Ele era maior do que eu. Arrumei uma turma pra pegá-lo. Tínhamos estiletes, tchacos, pedaços de pau, maconha. Não só não consegui me vingar, como acabei preso, junto com meus amigos. A polícia veio, fechou a praça e levou todo mundo. Fiquei detido em uma cela no antigo Projeto Fênix do bairro Baeta Neves. Junto comigo tinha traficante, homicida, todos menores. Aprendi a fumar pasta de dente com cigarro – dava uma dor de cabeça desgraçada. Presenciei todo tipo de violência. A maior delas foi ver minha mãe chorando desesperada."

Marco Antonio da Silva Souza, o Marquinhos, seria preso ainda outras seis vezes. Tornou-se assaltante e traficante. Andava armado, fugia da polícia. Na cadeia, aprendeu o bê-a-bá da tortura: palmatória, petróleo (ficar girando em volta do dedo indicador grudado no chão, enquanto sofria uma sessão de pancadas), cotó (apoiar-se com dois dedos na parede e suportar as marretadas ao longo da espinha). Presenciou e participou de violência sexual contra outros internos da Febem. "A gente depilava os garotos. Fazia fila (para o estupro dos novatos). Amarrava alho no corpo deles pra queimar a pele. Mundo cão."

Aos 17 anos, o currículo era expressivo: tinha sete passagens pela prisão, mulher e filha, era dono de uma boca-de-fumo e havia perdido o pai, assassinado em um ponto de ônibus, no Jardim das Orquídeas, durante um assalto. Nunca havia comido salada, ou "mato", e não sabia falar ao telefone.

A vida mudou em uma tarde, quando a campainha de sua casa tocou e na porta estava um educador de rua. Marquinhos achou que o educador queria comprar maconha, mas era uma oferta de emprego:

"Tem registro em carteira?", Marquinhos perguntou, desconfiado. "Tem." Verdade. O emprego era para participar do projeto GAR (Grupo de Ação de Rua), criado pela Pastoral do Menor e estudantes de Jornalismo, coordenados pelo professor Luiz Roberto Alves, do então Instituto Metodista de Ensino Superior.

Da vida bandida, sobraram lembranças de perseguição e do medo de ser apanhado. "Uma vez, na favela do Oleoduto, eu e um amigo fomos assaltar um sujeito de bicicleta. Dei um tiro com uma 32, Smith&Welson velha, para o chão, pra assustar, e apareceu o Tático (Móvel). A gente correu para se esconder no meio do mato. Ficamos três horas rastejando na lama. Via as botas dos soldados. Os tiros zuniam pelas nossas orelhas. Você fica em choque, em pânico. É a hora da disenteria."

Medo mesmo ele passou durante as denúncias públicas feitas contra um grupo de extermínio que agia no Grande ABC e que pode ter executado quase uma centena de meninos de rua. O policial denunciado por comandar o esquadrão da morte chamava-se Clidenor Anselmo Brilhante, o Esquerdinha (assassinado em 15 de janeiro de 1992). "Fui participar do processo que julgava o Esquerdinha. Saí por uma porta e dei de cara com ele e toda a gangue bem na minha frente. Ele me comeu com o olho."

Aos 37 anos, depois de três casamentos, quatro filhos e uma neta, Marquinhos dirige hoje a ONG (Organização Não-Governamental) Meninos e Meninas de Rua de São Bernardo. O projeto atendeu 2.276 pessoas no ano passado, 1.612 delas crianças e adolescentes. A sede fica na rua Jurubatuba, 1.610,

e a filial funciona em Guarulhos, na rua Benedito Rodrigues de Freitas, 78.

A ONG, coordenada por Marquinhos, procede da mesma maneira que o educador de rua agiu com ele no passado: vai ao encontro dos meninos e adolescentes em situação de risco e procura incluir essa galera em algum programa social.

O passado de prisões e vida na rua ganhou um movimento simbólico e transformou-se em obra de arte. "Quando a cadeia de menores que funcionava no Baeta Neves foi demolida, guardei a porta de ferro, onde fiquei preso pela primeira vez."

Essa porta virou um monumento, criado pelo artista plástico Ricardo Almadasi, e espera uma deixa para ser levada a uma praça da cidade. "É bom que São Bernardo não esqueça como tratava suas crianças de rua."




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