Cultura & Lazer Titulo
Irreverência e poesia além da visão
Luzdalva Silva Magi
Especial para o Diário
25/07/2010 | 07:55
Compartilhar notícia
Da AE


"Eu sou a mosca da sopa/ E o dente do tubarão/ Eu sou os olhos do cego/ E a cegueira da visão". Abro este texto com a estrofe da música Gita de Raul Seixas e Paulo Coelho, para descrever um poeta de espírito irreverente, de traço rebelde e, como dizia Walter Franco, que mantém "a espinha ereta e o coração tranquilo". Assim é Glauco Mattoso e seu humor cáustico, sua inteligência cortante e, sem rodeios, aquele que ilustra e canta a vida com versos pontiagudos e traços assimétricos.

Alguns o chamam de poeta escatológico, definição lógica posto que ele faz com que brote da imundície e fealdade pura beleza artística, alquimia difícil esta de transformar o lixo e a demência em poesia. Incomodar, questionar, enxergar além da cortina de alienação que a sociedade oferece é o objetivo daquilo que ele produz. Pedro José Ferreira da Silva nasceu em São Paulo, em 1951. A perda progressiva da visão originou o pseudônimo glaucomatoso. Em 1995 perdeu totalmente a visão. Sua contribuição para a contracultura brasileira é grande e importante.

Fazer arte é enxergar um pouco além ou apenas sentir com enorme intensidade as coisas?
GLAUCO MATTOSO - Para o artista que tem seus cinco sentidos, é a quinta-essência da sensibilidade, a intensidade mais requintada. Para o artista cego, é a visão transcendental, o sexto sentido, talvez o 666º sentido, dependendo do pacto que o bruxo faça com a arte, como no caso dos blueseiros.

Nas entrelinhas da irreverência e da característica underground é possível perceber certa nostalgia romântica em seus poemas, isso procede ou é minha forma de leitura?
MATTOSO - Procede. E a nostalgia não é só romântica. Cronologicamente falando, o meu caso de pós-modernidade vem a ser transgressivo justamente porque remonta ao oitocentismo, com todas as implicações estilísticas da época, sejam elas românticas, parnasianas, simbolistas ou naturalistas. Acredito que reside precisamente no contraste entre o terceiro milênio e a Belle Époque o paradoxo barroco, ou barroquismo, da minha arte underground.

O material poético vinculado à miséria e ao abandono continua crescendo nas esquinas, não só dos centros urbanos, mas também em cidades pequenas. A banalização afeta a inspiração?
MATTOSO - Pode afetar, mas afeta positivamente, no sentido de oferecer constante estímulo à criação e à criatividade. Quanto maior a abundância de matéria-prima em termos de ‘desumanismo', maior a quantidade de sonetos que produzo e maior o desafio de criar sempre algo que represente variação dentro do mesmo tema miserável e violento.

Em épocas de Pânico na TV e CQC, humor de terno travestido em denúncia social, faz falta o Pasquim?
MATTOSO - Não vejo tanta distância entre aquela imprensa nanica e a mídia atual, exceto em termos tecnológicos. No conteúdo, em termos de crítica de costumes, esses programas televisivos e o tabloidismo satírico pouco diferem. O que imortalizou a chamada ‘resistência cultural', ou antes, contracultural, foi o fato de ter combatido uma ditadura militar, comum na fase da Guerra Fria, mas hoje a ditadura é econômica e globalizante, e a única forma de criticá-la é comunicar através das mídias atuais e da linguagem do momento. Isso não tira o mérito do poeta que milite, quixotescamente, como franco-atirador da sátira.

O fim da ditadura podou a criatividade de alguns?
MATTOSO - Isso é perceptível, principalmente nos geniais letristas, como Chico Buarque, e nos literatos mais presos ao engajamento esquerdizante. No caso da crítica de costumes, cuja tradição é mais ampla no tempo e no espaço, os intervalos entre os sucessivos ciclos ditatoriais até realçam e evidenciam o papel combativo da arte.

A ‘mordaça' é necessária para que se ouçam os gemidos ou o sofrimento e a repressão são matérias-primas da criatividade humana?
MATTOSO - De maneira geral, o sofrimento e as carências humanas sempre serão ingredientes para a criação artística. No meu caso, o sofrimento acentuado pela cegueira aguça a percepção sadomasoquista no tratamento temático das questões mais universais. Paradoxalmente falando, eu diria que até prefiro que haja mais censura para que eu possa transgredí-la e desafiá-la mais frequentemente. Como diz o ditado, o proibido aguça o dente.

Em épocas de ‘extrema liberdade' talvez tenha nascido um grande sentimento de inércia, o que você pensa sobre isto?
MATTOSO - Essa sensação de liberdade é ilusória. Vivemos um período de permissividade, impunidade e banalização da violência, mas isso, ao invés de libertar, aprisiona a gente, nos cerca de insegurança e de paranoia. Cada um reage a isso como pode. A maioria reage se alienando, daí a aparente inércia. Já o artista rebelde reage criando compulsivamente, como no caso dos meus sonetos. Tudo não passa de sintomatologia psicótica, já que somos todos um bando de loucos neste imenso manicômio planetário.

O que acha da geração beat, Kerouac, Ginsberg, Burroughs...Você foi influenciado por eles?
MATTOSO - O que tenho em comum com o coloquialismo deles é o mesmo que tenho em comum com o informalismo da nossa poesia marginal: a irreverência vocabular e sintática, a contemporaneidade da linguagem. Mas minha linhagem mais consanguínea é a dos malditos franceses (Rimbaud, Verlaine, Baudelaire, Apollinaire) e a dos fesceninos italolusitanos (Aretino, Belli, Madragoa, Bocage), resalvando que todos, beatniks, hippies, punks ou malditos, temos em comum a rebeldia do guerrilheiro, a teimosia do pecador, a alegria do palhaço ou a cantoria do repentista.

Bukowski, J. D. Salinger, Wilde e Augusto dos Anjos mudaram conceitos, você concorda? Por quê?
MATTOSO - Concordo, mas acho que nenhum conceito é tão universal que mereça mudanças universais, ou seja, cada um adota ou reformula conceitos de acordo (ou desacordo) com sua história pessoal e seu meio. A mim marcou menos o que foi mudado por Wilde ou Augusto dos Anjos, que o que foi mudado (ou reafirmado) por Sade, Masoch, Genet, Orwell e Burgess, por exemplo.

Grande parte dos seus entrevistadores tem fixação por sua vida particular, isso não te deixa irritado?
MATTOSO - Não, pela simples razão de que entendo ter a obra uma relação direta com a biografia de um autor. Quando o próprio autor insiste em se autobiografar em prosa e verso, como no meu caso, nada mais lógico que atrair a curiosidade do leitor ou do entrevistador sobre a verossimilhança dos detalhes mais podres que envolvem o meu passado.

Quadrinho no Brasil não é valorizado, seria cultural esta postura?
MATTOSO - Também lá fora os quadrinhos não eram (e nem sempre são) devidamente valorizados. Aqui isso começa a mudar, mas temos que dar o desconto da habitual defasagem que nos atrasa em tudo. Hoje estão praticamente canonizados tanto um Mauricio ou um Ziraldo quanto um Angeli, um Glauco, um Marcatti ou um Mutarelli. Mais que isso, seria exigir demais num País onde ainda falta resgatar a importância de poetas como Emilio de Menezes ou Luiz Delphino.

Gêneses do Robert Crumb, The Lost Girls do Alan Moore são trabalhos fenomenais e bastante ácidos. Falando nisso, o que você acha de nomes como Crumb, Moore, Stan Lee, Moebius e tantos outros?
MATTOSO - Aqui vale o que falei acerca de Wilde ou Bukowski: fui mais impressionado por outros nomes, como Pichard, Crepax e Tom of Finland, mas não deixo de cultuar os citados. Apenas acho que, tal como na literatura, temos que começar a dar igual valor aos santos de casa, como Lourenço Mutarelli, que está no mesmo patamar de um Crepax.

Penso que os desenhistas de hoje são os pintores de outrora. Alguns trabalhos resgatam Renoir, Van Gogh, Picasso, Dali, Rafael... Você acha exagerada esta comparação?
MATTOSO - Não, na mesma medida em que os letristas do rock atual são os compositores operísticos de outrora, como no caso de Townshend em relação a Rossini, o que vale para os cineastas e roteiristas em relação aos dramaturgos clássicos. O importante é não perder de vista que se pode continuar criando, a qualquer tempo, tanto na pintura como no cartum, no rock como na ópera. Nenhuma arte e nenhum gênero perde a validade só porque a tecnologia avança ou porque o computador disputa logar com o livro. Sempre haverá quem toque chorinho ou jazz à moda tradicional, e sempre haverá público para o cinema mudo.

Desvende para nós o poeta Glauco Mattoso e suas paixões.
MATTOSO - Não posso. Um bruxo não revela os termos de seu pacto com o Demônio, ou com os demônios. Cabe ao leitor procurar tais indícios no meio de tantas perversões e perversidades que tematizo.

Luzdalva Silva Magi é poeta e professora, formada em Letras pelo Centro Universitário Fundação Santo André e autora de artigos na revista ‘Conhecimento Prático de Literatura'




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;