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Woody Allen mostra a crise de criaçao de Harry Block
Do Diário do Grande ABC
10/06/1999 | 16:32
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Harry Block é o nome do personagem do novo Woody Allen, "Desconstruindo Harry", que chega aos cinemas. Aliás, com dois anos de um atraso neste caso imperdoável dada a qualidade do filme. Por que Block? Porque o sujeito é um escritor e está vivendo aquele inferno astral dos artistas chamado de bloqueio criativo. Acha que a fonte secou, o que é intolerável. Tanto assim que - dizem - antes de meter um rifle de caça na boca e puxar o gatilho com o dedao do pé, Hemingway teria murmurado: "Nao funciona mais." Ignora-se se estava se referindo ao intelecto ou ao instinto. Ou a ambos. Enfim, encontrava-se, como Block, bloqueado.

Em todo caso, Harry (vivido pelo próprio Woody Allen) nao se pode queixar de bloqueio da libido, mas talvez do seu excesso. É um priápico, casado com a psicanalista Joan (Kirstie Alley), que sofre com as aventuras do marido. Uma delas é a esplendorosa Fay (Elizabeth Shue), aliás cliente de Joan, fato que propicia uma das mais hilariantes cenas de ciúmes jamais vistas numa tela de cinema.

Enfim, Harry nao consegue criar, por isso se recorda da sua vida. Quer dizer, cai na mesmice de todos os mortais, que é a de só ter a experiência própria para trabalhar, já que a imaginaçao falha. As suas recordaçoes junta o elenco de personagens que criou ao longo da vida. E, no fim, consegue aquela conciliaçao improvável entre desejo e limitaçao, entre imaginário e realidade. Conciliaçao idealizada, fornecida pela mais poderosa fonte de inspiraçao do filme, "Oito e Meio", a obra-prima de Federico Fellini.

O escritor Harry Block de "Desconstruindo Harry" é como o cineasta Guido Anselmi (Marcello Mastroianni) de "Oito e Meio". Fazem do impasse uma soluçao. Nao é que tirem leite de pedras. Fazem mais. Do vazio constroem um mundo. Tranformam aquele pavor diante da página em branco, de que falava Mallarmée no impulso mais forte para o ato da criaçao artística.

Como à certa altura da história Harry vai receber uma distinçao acadêmica (da faculdade que o expulsou), a coisa toda acaba por virar um road movie. Harry nao quer ir sozinho, por isso coloca no carro uma prostituta, um amigo cardíaco, e o filho, que ele apanhou na porta da escola, à revelia da ex-mulher hostil. No caminho, uma parada, dolorosa, mas também hilária, para visitar a irma, judia ortodoxa. A viagem emocional o road movie existencial que inclui recordaçoes da infância, remete a outra das principais fontes de inspiraçao de Allen: o sueco Ingmar Bergman.

No clássico "Morangos Silvestres", o velho professor Isaac Borg (Victor Sjostrom) revê sua vida egoísta enquanto cruza a Suécia para receber uma distinçao acadêmica. Harry, por sua vez, escava suas raízes familiares durante a ida à faculdade. Borg é duro, introspectivo, emocionado. Harry é irônico, agudo, hilário. Duas maneiras distintas de fazer a mesma viagem interior.

Há quem também veja, em "Desconstruindo Harry", o diálogo de Woody Allen com Truffaut. De fato, seu personagem, quando jovem, vive situaçoes idênticas às de Antoine Doinel (alter ego de Truffaut, interpretado por Jean-Pierre Léaud) em "Beijos Roubados" e "Domicílio Conjugal" - isso para nao falar do tipo criado por Charles Denner em "O Homem Que Amava as Mulheres".

As referências aos favoritos de Allen - Fellini, Bergman Truffaut - fazem dele um pós-moderno? Nao, porque no caso se trataria de uma colagem artificial como outras tantas. As referências estao lá porque se encontram perfeitamente integradas no imaginário do artista Woody Allen. Ele pode usar cada um desses mestres do cinema à vontade. Fazem parte dele.

As aproximaçoes nao acontecem por acaso. Como "Oito e Meio" e "Morangos Silvestres", "Desconstruindo Harry" é, também, um filme de balanço. O artista e o homem, confrontado a si mesmo, avalia se o caminho feito até entao valeu a pena. Mobiliza o que viveu e criou, as pessoas com as quais se relacionou, quem feriu e por quem foi ferido - coloca tudo na balança e tenta encontrar algum sentido, ou conforto, para o que virá a seguir.

O fato de Woody Allen ter tirado de uma reflexao tao séria um dos seus filmes mais divertidos mostra o estágio avançado em que se encontra seu cinema. "Desconstruindo Harry" contém algumas seqüências de antologia humorística. É às vezes sarcástico, sem deixar de ser humano. Consegue a proeza da escatologia sem perder a elegância. Trilha sonora de primeira (como sempre) embalando a trajetória de um homem que sabe rir dos outros porque aprendeu a rir de si mesmo. Poder rir: essa é a verdadeira grande arte.

Serviço - "Desconstruindo Harry". Comédia. Direçao de Woody Allen. Com Caroline Aaron, Woody Allen, Kirstie Alley, Billy Crystal, Judy Davis, Amy Irving, Elisabeth Shue, Demi Moore, Robin Williams. Duraçao: 95 minutos. Distribuiçao: Buena Vista International.




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