Política Titulo Entrevista da semana
'Temos de levar música para quem não tem acesso’
Miriam Gimenes
Diário do Grande ABC
13/08/2018 | 07:00
Compartilhar notícia


Diretor Artístico da Ossa (Orquestra Sinfônica de Santo André), desde 2014, o maestro Abel Rocha é doutor em música e desenvolve forte atividade na formação de regentes em diversos festivais de música.

Especialista em ópera, teve atuação diversificada no repertório sinfônico e também na direção musical de espetáculos cênicos como balés, peças de teatro, e diversos shows e musicais.

Foi também diretor artístico do Theatro Municipal de São Paulo entre 2011 e 2012 e regente titular da Orquestra Sinfônica Municipal, tendo recebido diversos prêmios da crítica especializada pela inovadora programação lírica da casa.

Raio X
Nome: Abel Rocha
Estado civil: Solteiro
Idade: 56 anos
Local de nascimento: São Paulo
Formação: Mestrado em Regência de Ópera na Alemanha e Doutorado em Música na Unicamp(Universidade Estadual de Campinas)
Hobby: Cozinhar
Local predileto: Uma rede após o almoço
Livro que recomenda: Todos, qualquer um, ler sem parar. Atualmente estou lendo Saramago e Chomsky
Profissão: Regente e professor
Onde trabalha: Orquestra Sinfônica de Santo André e Unesp (Universidade Estadual Paulista)

De que forma a arte entrou em sua vida?

Não venho de família de musicistas. Tive a possibilidade de ter contato com música na escola (pública) desde pequeno. No ginásio (estadual) com prática musical constante, no colegial (escola técnica federal) com prática de canto coral. Esses contatos me levaram, com muito apoio de meus pais, a estudar música com mais interesse. Entrar numa faculdade de música foi passo natural. Daí para frente, a vida foi me levando.

Você passou por outros lugares antes de chegar a Santo André. O que o trouxe para a região?

Meus principais e mais visíveis trabalhos antes de Santo André foram como diretor artístico do Theatro Municipal de São Paulo nas temporadas 2011 e 2012; regente da Banda Sinfônica do Estado entre 2003 e 2009 e do coral Collegium Musicum entre 1984 e 2010. Em todos esse locais, creio que pude colaborar com a diversidade de linguagens e programação, fruto de minha convivência com distintos grupos artísticos. Também sou professor universitário há mais de 20 anos em, com isso, minha preocupação didática é muito marcante. Assim, a criação das diversas séries de concertos que a Ossa realiza desde minha entrada é fruto dessa diversidade de preocupações e atividades. Também creio que a maneira de gerir o grupo é fruto dessa minha experiência, que propiciou a realização de programações diversas.

A Ossa é a única Orquestra Sinfônica que sobreviveu no Grande ABC. Como encara essa realidade?

A lei de criação da Ossa, de 1987, resultado do trabalho empreendido pelo maestro Flavio Florence e integrantes da sociedade andreense, foi importantíssima para assegurar a longevidade dos trabalhos da orquestra, garantindo à cidade um lugar de destaque no panorama musical brasileiro. A falta de um ensino de artes consistente – e em especial, de música – nas escolas de níveis básico e médio, causou nos últimos 30 anos dicotomia na formação humanística de toda a população. Ao mesmo tempo em que se priorizou o ensino de Português e Matemática, que no meu entender são disciplinas meio, retirou-se a relação delas com o objetivo final desse aprendizado: devemos saber Português para ler e discutir a história, literatura, desde livros a roteiros de cinema, cidadania (conhecimento de leis e de nosso direitos e deveres) aprender filosofia, estética e moral; devemos estudar Matemática para aplicá-la no estudo da física, da engenharia, arquitetura, economia, para desenvolver a lógica, inclusive em situações cotidianas.

Do mesmo modo, as artes (e a música em especial) foram transferidas para a responsabilidade da cultura, historicamente com um viés equivocado de entretenimento e com orçamentos infinitamente menores que a educação (numa média nacional de 15% para educação para 0,6% para cultura. Assim, creio que mudança nos objetivos da Educação Básica seja necessária e, com isso, diversas necessidades do universo humanístico apresentariam um desempenho melhor, com mais demanda por atividades de artes e afins.

De que maneira acha que o público encara a música erudita? Há preconceito?

O público não tem preconceito. Posso usar como exemplo os próprios concertos da Ossa, que têm apresentado superlotação nos últimos anos. O Teatro Municipal já é pequeno para a demanda da cidade. O preconceito se dá nos organismos de divulgação e promoção que consideram que música de concerto não é popular e optam por divulgar ou promover atividades que darão, no entender desses órgão, retorno garantido. Assim, divulga-se menos as atividades da música de concerto do que se seria necessário.

Desde que o senhor entrou, notou o aumento de público?

Como já disse anteriormente, o aumento de público é visível. Os ingressos são gratuitos e distribuídos com duas horas de antecedência. As filas começa a se formar bem antes disso e, em média, aparecem 200 pessoas a mais do que a lotação total do teatro. Com certeza isso é fruto de um trabalho de fidelização de público que a Ossa vem fazendo nos últimos anos, com programas diversos, cheios de novidades, e com com interação grande entre palco e plateia.

Vocês realizam, anualmente, seleção de jovens músicos para treinamento. Qual o intuito da iniciativa?

A seleção que a Ossa faz é para músicos profissionais quando há vagas abertas na orquestra. É um desejo antigo da orquestra ter uma escola de formação na cidade. Mas ainda são planos para o futuro.

Também há a Ossa itinerante. Já foi para Oliveira Lima, a hospitais. Qual a importância de levar a música para onde as pessoas não têm acesso?

Exatamente essa: levar a música para pessoas que não têm acesso. Ou muitas vezes imaginam não ter. Em nossos concertos regulares é cada vez maior a presença de pessoas que conheceram a orquestra num de nossos concerto itinerantes, realizados em diversos locais da cidade (igrejas, associações, quadras, ar livre etc). Essa experiência de assistir à apresentação da orquestra pela primeira vez nesses locais faz com que as pessoas desejem conhecer o teatro da cidade, acompanhar de perto outras programações, e participar mais da vida cultural de Santo André. Temos depoimentos de pessoas que se transformaram em frequentadores assíduos do teatro municipal da cidade após ver a Ossa tocar num concerto itinerante.

E quando é um local carente a apresentação? Qual a recepção do público?

A apresentação de uma orquestra é sempre muito marcante, principalmente para as pessoas que sempre ouviram que música clássica não é para elas. Em diversas de nossas apresentações em locais inusitados da cidade (calçadão, terminal rodoviário, shoppings, parques, escolas, abrigos para pessoas sem moradia etc) sempre propomos uma grande interação com o público, colocando inclusive as pessoas para regera orquestra. Há vários vídeos disponíveis na internet dessa ações. Uma muito marcante foi o concerto sensorial para pessoas com deficiência auditiva.

O que significa a Ossa na sua vida?

A Ossa é meu mais recente desafio (risos). O grupo é extremamente unido e disponível a novos trabalhos e novas abordagens, tendo entendido e concordado que é extremamente importante criar diversas interações com o público, tanto durante o concerto quanto no dia a dia. A parceria de todos os músicos em projetos, ideias e programações é muito grande, e sou grato a todos eles por terem me acolhido e serem cúmplices nesta jornada, que tantos concertos e programações tem oferecido à cidade.

Qual a magia de uma apresentação musical?

Acho difícil descrever em palavras. Uma apresentação musical não é só musical. Você pode ouvir o som de uma orquestra com fones de ouvido ou num super equipamento de som. Mas nunca terá a experiência de conviver com o som ao vivo. Afinal, 80 pessoas não cabem numa caixa acústica. Em nossos concertos, sempre conversamos com a plateia, destacando coisas que poderão ser percebidas durante a apresentação, que podem ir desde uma ideia propriamente musical, a uma sonoridade especifica, ou ao jeito de um de nossos musicistas tocar uma determinada passagem, ou mesmo interagindo durante a música. É, com certeza. uma experiência única.

Você acha que de que maneira a música pode mudar a vida de uma pessoa?

Vários estudos comprovam que o aprendizado musical colabora para diversas áreas de cognição de nosso cérebro. Desde o aumento do poder de concentração, de relacionamento entre fatos e conceitos, até o desenvolvimento maior daquilo que comumente chamamos de criatividade ou imaginação. Vejo comprovações que essa formação mais ampla, com uma dedicação forte às humanidades, propicia este maior desenvolvimento criativo. Veja o exemplo de muitas empresas de tecnologia de ponta em informática, por exemplo, que incentivam horários de atividades humanísticas para seus trabalhadores (artes, esportes, entretenimento) como fator de estímulo à criatividade, que é o grande diferencial moderno. Não precisamos mais tato de pessoas que saibam fazer cálculos, mas que desenvolvam novas ideias. Nesse sentido, as música pode salvar muita gente.

Como o senhor vê o incentivo à Cultura na região?

Percebo que a demanda por atividades culturais (a Orquestra Sinfônica inclusa) tem aumentado muito na região. O Teatro Municipal de Santo André já é pequeno para a possibilidade de público que o procura. Percebo também algum aumento na o interesse da sociedade civil de promover eventos culturais e artísticos (a Ossa é constantemente consultada para realizar concertos além da programação oficial). Falta, talvez, uma cultura mais enraizada de que a atividade artística pode ser bancada pela iniciativa privada e não somente pelo poder público.

Além da música clássica, quais são as outras linguagens musicais que o senhor flerta?

Acredito que essa divisão entre música clássica e música popular só existe por causa de uma necessidade mercadológica... Isso porque os músicos da orquestra estão sempre prontos e preparados, em menor ou maior grau, para atuar em todas essas áreas.

O que sonha para o futuro da música no Grande ABC?

Sonho sempre com o ensino de artes como parte fundamental da formação do ser humano. Não preciso entrar em detalhes aqui de quantos e tantos estudos que já comprovaram que o ensino de música propicia melhoras incomensuráveis no aprendizado geral de crianças e jovens. A expressão artística é uma necessidade básica e inerente ao ser humano, e um relacionamento forte com as artes em geral na escola formará melhores cidadãos. 




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;