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Murilo Salles relança obra com cara e coragem
23/07/2009 | 07:00
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Há quase 15 anos, o cinema brasileiro praticamente não existia quando a diretora Carla Camurati realizou Carlota Joaquina, Princesa do Brasil. Com os canais de produção e distribuição desmantelados após a extinção da Embrafilme pelo governo Collor, Carla tomou a iniciativa de pegar o próprio filme debaixo do braço e percorrer o Brasil, recriando o sistema exibidor. Ela provou que o cinema do Brasil era viável e iniciou o processo que ficou conhecido como Retomada.

Passado todo esse tempo, outro diretor brasileiro vira agora seu distribuidor. Murilo Salles é o primeiro a dizer que não pensava em fazer isso. Tudo começou quando ele quis lançar "Nome Próprio" em DVD. O filme com Leandra Leal havia sido lançado pela Downtown nos cinemas, mas a distribuidora não atua em DVD. Murilo contactou várias distribuidoras, que, alegando dificuldades, aceitavam colocar os discos digitais nas locadoras, desde que ele arcasse com os custos. Se era para fazerem só isso, Murilo chegou à conclusão que seria melhor assumir o risco de encarar todo o processo. Foi o que fez.

Começou com "Nunca Fomos Tão Felizes", restaurou mais três - "Faca de Dois Gumes", "Como Nascem os Anjos" e "Nome Próprio"; "Seja o Que Deus Quiser" ficou fora porque já estava disponível em disco digital. Virou o próprio distribuidor.

"Consegui uma verba da RioFilme para me ajudar no restauro. A RioFilme está aproveitando para criar sua coleção Cineastas. Foi um oásis, porque todos que contactamos - a produtora Carla Niemeyer e eu - se recusavam a participar, alegando que o momento é péssimo."

Com a cara e a coragem, Murilo está recolocando sua obra na rua. O problema inicial é que não existe no Brasil uma instituição com o encargo de restaurar a memória audiovisual do País.

No Brasil, a restauração das obras de autores importantes como Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade deve-se à iniciativa das famílias de ambos, que buscaram patrocínio e conseguiram salvar verdadeiros clássicos do patrimônio cinematográfico nacional. Mas são iniciativas isoladas.

"Precisamos, sim, de um programa de restauro que preserve nosso patrimônio, independentemente dessas tentativas isoladas."

DESCOBERTAS - Para Murilo Salles, os últimos meses foram de descobertas. Como diretor, ele assumiu conscientemente um risco - sempre quis fazer filmes diferentes uns dos outros, menos preocupado em contar histórias do que em vivenciar (e radicalizar) o processo de realizar cada um deles. "Meu negócio é, sempre foi, o próprio cinema", diz. Por isso, ao se debruçar sobre cada um de seus filmes ele foi descobrindo que existe um traço, uma autoria, muito mais forte do que supunha.

Mesmo quando realiza filmes de gênero - o policial Faca de Dois Gumes -, Murilo tem a impressão de estar sempre questionando as estruturas narrativas. "Olhando todos os meus filmes, percebi que vivo me deslocando ou deslocando o foco entre formas de narrar que desembocam numa tragédia." Nunca Fomos Tão Felizes, seu primeiro longa, de 1984, já apontava nessa direção. Adaptado do conto Alguma Coisa, Urgentemente, de João Gilberto Noll - e interpretado por Cláudio Marzo e Roberto Bataglin Jr. -, o filme trata do reencontro entre pai e filho.

Ambos viveram afastados e agora se reencontram nesse apartamento quase deserto, exceto pela TV e pela guitarra. O pai tem uma vida misteriosa e clandestina que o garoto tenta entender, até como forma de descobrir a própria identidade.

Fotografado por José Tadeu Ribeiro, Nunca Fomos tem alguns dos mais belos movimentos de câmera da história do cinema brasileiro. Ele já havia telecinado "Nunca Fomos Tão Felizes", quando o filme foi lançado em DVD, mas as cores se haviam desbotado e a nova limpeza digital deixou o filme, como se diz, nos trinques.

O caso de Faca de Dois Gumes talvez tenha sido mais surpreendente para o próprio diretor. Ele admite que se encantou com o próprio trabalho. "Achei muito bem-feito, muito sólido e, de novo, tem essa coisa de viajar, aqui numa estrutura mais tradicional, de thriller, mas que o filme termina por desconstruir no desfecho."

"Como Nascem os Anjos", de 1996, foi pioneiro ao antecipar uma tendência que seria seguida por Beto Brant em "O Invasor". O filme confronta os mundos do poder e da marginalidade, o morro e o asfalto. Difere também de "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles (que Murilo considera um filme muito competente) ao mostrar a violência do morro invadindo à caça de um gringo rico. E tudo é filtrado pelo olhar dessas crianças cuja miséria incomoda o diretor.

"Nunca consegui lidar com a miséria, com essa coisa maluca do Brasil de classe média, de intelectual conviver lado a lado com a miséria absoluta e achar que é normal." O filme nasceu dessa indignação, de novo misturando e subvertendo gêneros, como Murilo sempre faz.




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