Cultura & Lazer Titulo
Sílvio Lancellotti - Soufflé: triunfo ou desespero
Especial para o Diário
06/01/2008 | 07:04
Compartilhar notícia


No comecinho da década de 1970, nos meus tempos de pós-graduação de comunicações na Universidade de Stanford, Califórnia, EUA, Bobbe Hornig, uma colega de turma, repórter-política do Washington Post, me apresentou a uma amiga que trabalhava no mesmo períodico, Patricia Wells, então a editora da área de artes e espetáculos.

As nossas afinidades se somaram. Eu provinha de uma função idêntica em Veja, cá no Brasil. Melhor: Patrícia, Bobbe e eu gostávamos de cozinhar. Trocamos experiências num jantar, no apartamento de Bobbe, que se esmerou em uma entrada de queijos e frios, enquanto eu me incumbia de uma pizza rústica, em forno elétrico, e Patrícia se encarregava de um soufflé de Gruyère para o nobilérrimo coroamento da nossa noitada.

Depois do jantar, observei que sempre me emocionava o momento do crescimento espantoso do cornicione, o círculo exterior da pizza, em qualquer tipo de equipamento de calor. E Patrícia, eufórica com o sucesso do seu prato, de fato o campeão daquela jornada, orgulhosa comentou: “Raríssimas receitas conseguem inflar tanto o ego do mestre-cuca como um soufflé correto.”

Com uma pitadinha de inveja pelo seu triunfo indiscutível, não resisti a um arremate irônico: “É, conseguem inflar, quando não murcham de maneira humilhante”. Patricia riu da minha frase, provocativa, mas verdadeira.

Daí, nos anos seguintes, já colunista de gastronomia, moradora de Paris e autora de best-sellers internacionais a respeito da nossa paixão comum, habitualmente me remeteu cartões de Natal com brincadeiras do tipo: “Ainda não perdi um só soufflé. Agora, quantos cornicione você queimou nos últimos meses?”

Efetivamente, invenção extraordinária de Marie-Antoine Carême (1783-1833), que nasceu e morreu em Paris; que começou no fogão e no forno ainda na sua adolescência; que fascinou os paladares de patrões como o diplomata Talleyrand, como os monarcas Jorge IV da Grã-Bretanha e Alexandre I da Rússia, como os bilionários Rothschild da Prússia; o soufflé propõe um mero milímetro de distância entre o Olimpo e o Inferno.

O bravo Carême, porém, desenvolveu truques de salvação, que Patrícia aprimorou e me ensinou, e que hoje eu divido com você, aqui no Diário. Registre os seus fundamentos, a partir das dicas no quadro ao lado.

Receitas

SEGREDO DE PATRÍCIA WELLS
Ingredientes, para uma pessoa: 1 forma refratária, de cerca de 15 cm de diâmetro por 5 cm de altura. Manteiga, para untar a forma. Mais 1 colher, de mesa, de manteiga já derretidinha. 1 colher, de sopa, de farinha de trigo. 1/4 de xícara, de chá, de leite amornado. Sal. Pimenta-do-reino. Noz-moscada. 1 colher, de café, de amido de milho, ou Maisena, já diluída em 1 colher, de chá, de água filtrada. 1 gema de ovo. 2 claras de ovo, superbatidas ao ponto de neve bem pegajosa. 50 g de queijo Gruyère, grosseiramente raladinho. 1 colher, de sopa, cheia, de queijo do tipo parmesão, raladinho em fios finos.

Modo de fazer: Unto a forma com a primeira manteiga e guardo na geladeira. Aqueço o forno, 290 graus. Numa panela pequena, em fogo suave, na manteiga restante, dissolvo a farinha. Agrego o leite. Mexo e remexo, para que tudo se amalgame, sem empelotar. Tempero com sal, pimenta-do-reino e noz moscada. Espero as borbulhas, misturando e remisturando, sem me cansar. Incorporo a Maisena diluída. Retiro do calor. Despejo a gema e bato com vigor. Acrescento as claras em neve, mexo e remexo sem cessar. Adiciono o Gruyère. Viro e reviro. Encaixo esse conjunto na forma que estava na geladeira. Com um dedo, afundo a massa, delicadamente, nas margens das laterais da forma – assim, ao se inchar, o soufflé não transbordará. Pulverizo o topo com o parmesão. Levo ao forno, até que o cimo do soufflé se mostre bem bronzeado e bem gratinado. Retiro, meticulosamente, e sirvo, ousadamente.

HOMENAGEM SAUDOSA À BOBBE HORNIG

Quem me acompanha constantemente, aqui no Diário, e quem, como a minha Mamma Elena, 84 de idade, sabe que já tratei da pizza, nesta mesma página, lá em maio de 2007; aceite que, neste rescaldo do jantar que travei com Patrícia Wells (e seu soufflé inolvidável), no príncípio da década de 1970, falta honrar Bobbe Hornig com a lembrança da sua tábua de frios, impecável para o Verão, ao lado de um chope gelado ou de uma garrafa de prosecco ou correlato.

Uma cartesiana, Bobbe montou o apetrecho, do qual petiscamos, a Patricia e eu, com quantidades iguaizinhas, de 30 g cada, de: Grana Padano (ou um bom tipo parmesão), Pecorino (ou queijo de leite de ovelhas), Provolone, Emmenthaler, Gruyère, Camembert, Brie, Gorgonzola, Jamón Serrano (um hit da Espanha, tranqüilamente encontrável no Brasil) e presunto cru, ao estilo de Parma. Claro, sossegadamente, você pode trocar um ou outro dos ingredientes ao seu alcance. De qualquer modo, por favor, tente desenhar a sua tábua de acordo com a elegância da foto e escoltá-la com um mix de frutas secas (como amêndoas e avelãs) e mais passas, das amarelas, sem caroços; com cachos de uvas Itália; mel; manteiga – e uma generosa cestinha de pãezinhos variados.

Curiosidades

AS DICAS CRUCIAIS DO SOUFFLÉ CORRETO

1. Compre os ovos, no mínimo, dois dias antes de perpetrar o soufflé – e evite acondicioná-los na geladeira. Ovos frescos têm gemas muito tenras, que deixam resíduos desastrosos nas claras em neve. Ovos resfriados têm gemas contraídas pela baixa temperatura, que não conseguem se livrar das claras.

2. Meça perfeitamente o volume da manteiga. Gorduras em demasia só retardam, arruinam, o processo de respiração do soufflé no calor do forno.

3. Na etapa em que os ingredientes se casam na panelinha, por favor, não econonomize no “misturar e remisturar”. Calque o braço. Quanto mais bolhas de gás carbônico houver na pasta, mais o seu soufflé se multiplicará.

4. Claro, cada forno doméstico possui as suas peculiaridades. Talvez o seu não saiba em que momento atinge os 290 graus. Nesse caso, assuma o seu ponto máximo e o ligue com uma hora de antecedência. Daí, depois de levar o soufflé ao forno, por favor, não caia, jamais, na tentação de verificar se subiu ou não. No máximo, deixe a luzinha acesa e examine o volume pelo vidro...

AS RAZÕES DA ESCOLHA DO GRUYÈRE

É óbvio que qualquer tipo de queijo pode redundar em um soufflé, ahn, decente, bonito, invariavelmente gostoso. Utilize a sua fantasia, cometa todos os seus testes, se assim desejar. O Gruyère, original da Suíça, embora existam gauleses e até vários nacionais de qualidade bastante responsável, foi o queijo que o mágico Carême escolheu para a sua alquimia insuperável. Profissional que me tornei, eu me dobro às suas determinações. Aliás, o queijo que a bela Patrícia adotou e que continua a respeitar na sua formulação. Caso você não encontre o original, ou prefira, o que me parece justíssimo, confortável, um produto mais acessível, tudo bem, sem problemas: mas selecione o seu tipo de Gruyère pelo aspecto visual. Compre aquele pedaço que, na gôndola do supermercado ou da delicatessen, apresentar menos furinhos e até, se possível, sem nenhum grande buraco na sua superfície aparente. Isso significará um queijo que não fermentou bem mais do que deveria na sua maturação – e que não padeceu com uma incômoda concentração de gorduras na sua massa.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;