A vida ali se esforça para manter a aparência normal...
A vida ali se esforça para manter a aparência normal. Até as ruínas, paisagem tão comum, passam despercebidas aos olhos injetados, e o movimento no mercado, afinal, é de gente que compra e vende como em qualquer lugar construído para esta finalidade. No semblante de cada um, uma indiferença quase sutil faz a guerra parecer distante, um quadro de gosto duvidoso que ainda não foi pintado. Dentes brancos tentam revelar um sorriso aqui, outro ali, esforço sobre-humano para impor-se como ser vivo. Será que a verdura é fresca?
De súbito, a explosão. O povo corre, esquecendo a mercadoria. As mãos são levadas à cabeça como se pudessem deter o peso do tijolo arremessado, a perfuração dos estilhaços, as queimaduras. O povo corre sem saber para onde, enlouquecido pelo terror, pela necessidade de proteger-se e ainda zelar pela segurança dos seus. A chuva de bombas é intensa e não permite a fuga para parte alguma. Tudo é caos. A população é massacrada, e sua agonia é transmitida via satélite, com tecnologia HD.
Mas a chuva finalmente passa e tudo volta à velha normalidade de socorrer os feridos e contabilizar os mortos. Caminhar pelos escombros também não é tarefa lá muito fácil, embora, é preciso admitir, tal exercício já faz parte do cotidiano daquela gente calejada há um bocado de tempo. Sobreviver, inclusive, é atividade das mais complexas num ambiente hostil em que o ódio impera soberano.
Mesmo assim, a mulher palestina dá entrevista ao repórter estrangeiro. Fala da angústia de se conviver com a destruição, com a dor, e com a morte que deixa seu cheiro espalhado em cada esquina. As lágrimas rolam quentes pelo rosto enquanto descreve a violência por atacado que apavora quando pensa na família engrossando as listas de mortos ou mutilados.
Gente como o menino de grandes olhos indagadores que, ao seu lado, aprecia. Desperta sua atenção o equipamento, o homem e seu jeito de falar. No fundo está contente, orgulhoso por ser personagem de uma história terrível que será contada para a humanidade. Meninos gostam disso. Aquele lugar, abominável aos olhos do mundo, alvo das atenções e das bombas, agora é manchete em todo o planeta que, embora indignado, deita a cabeça no travesseiro e pouco faz para deter o massacre.
Aos dez anos, o garoto tem a aparência comum de alguém de mesma idade que corre, brinca, é afobado e um tanto estabanado. Mas nos ombros carrega a responsabilidade de se manter vivo e dedicar ainda um tantinho de coragem para cuidar dos seus, até porque é homem e, provavelmente, remanescente na casa. A infância, diga-se de passagem, dura pouco em locais onde os sonhos de criança não têm permissão de existir. Assim, os bens de consumo que fazem a cabeça da molecada daqui do ocidente, não têm lá muito valor para alguém que sonha poder andar em liberdade, sem que tempestades de foguetes lhe caiam sobre a cabeça. Talvez nos seus devaneios, um vídeo game ensaie seduzi-lo. Logicamente que, neste caso, o aparelho palestino viria equipado com jogos sem armas, mortes e sangue derramado, como é peculiar nesta saudável brincadeira de criança que vive em paz.
Mas aquele é o berço em que o concebera sua mãe. Terra antiga, cheia de história, palco de batalhas de gente que reivindica e reivindica e, de tanto reivindicar, acabou por esquecer o motivo que os levara a deflagrar mais uma guerra.
Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blog cafeecronicas.wordpress.com
E-mail para esta coluna: souza.rodolfo@hotmail.com.
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