Os antigos prefeitos Lauro Gomes, Zampol ou Campanella não podiam pensar em política cultural local-regional, tanto porque não havia um sentido de destino comum neste território nascente e dependente quanto porque o pequeno arraial letrado tinha a cultura como expressão das belas-artes. Hoje, prefeitos, prefeitas e demais agentes públicos talvez se sintam desobrigados de construir uma política cultural para esta grande cidade de 2,3 milhões de habitantes do sudeste metropolitano. Por que? Em razão de que o Brasil também não a tem. Tampouco teve em 1990 ou no ano 2000. Somente a ditadura militar, nos anos 70, teve uma Política Nacional de Cultura, canhestra, patrimonialista, folclorizante e autoritária. No entanto, desde o início dos anos 90 se entrevê um destino comum para estas sete cidades. A cultura poderia ser a boa cola para atar os laços da cidadania.
Então, qual a razão de produtores culturais, animadores comunitários e educadores realizarem trabalho de Sísifo? Como entender o fato de que nenhuma prefeitura gaste pelo menos 2% do orçamento com a ação cultural? Também que empresas se interessem primordialmente por espetáculos lustrosos e rentáveis? Ou que a cultura plural do Brasil não seja, nem de longe, um valor básico para a abundante produção didática despejada sobre as escolas? Ainda que o grande esforço não fosse tido como mitigado por indivíduos, certamente o é como política urbana ou como projeto de mudança social.
Está claro que Sísifo retorna sempre que a cultura é entendida como estetização espetacular dos produtos da inteligência em vez de conjunto de valores que organiza a construção simbólica das pessoas. Por obra de uma antiga visão romântica, da propaganda e do mercado, o primeiro entendimento leva a shows encomendados, idolatria de artistas, mercadejamento da educação, dinheiro gasto quase à toa. De outro lado, cultura como organizadora da experiência simbólica levaria à integração de políticas de educação, saúde, transporte, ecologia, esporte, habitação, nutrição. Levaria à construção de comunidades cívicas local-regionais, participativas e autônomas. Sobre elas falaram e lutaram bastante, cada qual com seu discurso e sua prática, Celso Daniel e Paulo Freire, e cuja construção não viram, amplamente, até o fim de suas vidas.
Evidentemente, este tema vital merece muitos textos, debates, encaminhamentos políticos. À guisa de sugestão para a nossa regionalidade, pode-se destacar e propor: a) convite às pessoas interessadas, especialmente os grupos jovens, para a construção de novos indicadores para a ação cultural na cidade, repercutindo-os nas mídias local-regionais e buscando reorientar os serviços públicos de cultura; b) construir um plano pedagógico de caráter educativo-cultural, radicalmente novo e com base regional, para a educação fundamental e média, integrando os apoios de todo o ensino superior da região; c) estimular amplamente a criação das narrativas e da poética da memória comunitária, fazendo-as dialogar com o sistema escolar; d) rediscutir a cultura como referência interpretativa da cidade que se deseja construir, eqüitativa e aberta; e) repensar o Grande ABC à luz das "culturas do trabalho" que nos forjaram e ainda têm muito a contribuir para a nova polis.
Luiz Roberto Alves, 57, é professor e pesquisador na Umesp e na USP e coordenador da Cátedra Prefeito Celso Daniel de Gestão de Cidades, da Umesp.
Nota da Redação: ‘Trabalho de Sísifo’ indica uma tarefa que tem sempre de ser recomeçada. Segundo a lenda grega, Sísifo, rei de Corinto, foi condenado pelos deuses ao suplício de rolar uma rocha até o cimo de um monte de onde ela eternamente des-pencaria, devendo ele sempre recomeçar o trabalho.
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