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‘Covid escancarou a desigualdade que temos no Brasil’
Por Anderson Fattori
Do Diário do Grande ABC
28/06/2020 | 23:33
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Divulgação


Nome certo na equipe do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) após a eleição, Mozart Ramos agradece à bancada evangélica por não ter permitido que assumisse o Ministério da Educação. Segundo ele, sua admiração por Paulo Freire não permitiria durar muito tempo no cargo. Educador e escritor, foi secretário de Educação de Pernambuco e reitor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), experiência que lhe permite analisar com frieza os estragos da pandemia no setor. Mozart acredita que o coronavírus antecipou estudo híbrido que era iminente, é contra anular o ano letivo e mostra grande preocupação com a evasão após a crise sanitária.  

Como viu o estrago que a pandemia causou na educação?
Da noite para o dia a pandemia colocou 1,5 bilhão de estudantes sem poder ir à escola ou à universidade (no mundo). Nove de cada dez estudantes tiveram que rever seu modo de viver, de estudar, de pensar, e isso, naturalmente, trouxe grande desafio para as escolas de maneira geral. A Covid escancarou a desigualdade que temos no Brasil. A gente conhecia os indicadores educacionais, mas a gente, de repente, percebeu que era muito maior. As instituições tiveram de pensar currículo on-line, com atividades não presenciais. Foi aí que a gente claramente verificou que o setor privado conseguiu responder mais rápido. Estamos longe de ter todas as famílias com acesso à internet banda larga. A gente olha os municípios, têm muitos que nem sequer fizeram nada até agora, principalmente aqueles de menores porte e condição socioeconômica. É como se os alunos estivessem de férias há mais de dois meses. E vai ser enorme desafio, mesmo para o setor privado, a questão da volta das atividades presenciais. Por outro lado, a gente está percebendo que esse novo ambiente causado pela Covid está desenvolvendo algumas habilidades, principalmente para aqueles que estão tendo essas atividades não presenciais, e habilidades que são muito importantes para a vida. Acho que a criatividade foi posta em prática, a questão do autoconhecimento, as pessoas tiveram que se conhecer melhor, tiveram que fazer mergulho dentro de si.

De alguma maneira a pandemia antecipou um tipo de ensino que se avizinhava?
Sou químico e costumo dizer que a Covid foi um catalizador, aquela substância que aumenta a velocidade de reação química. Portanto, acelera a reação. Acho que a Covid começou a exigir olhar de como oferecer o acesso à educação. Já há algum tempo, a gente vinha percebendo estudos mostrando isso, que os alunos queriam maior flexibilidade e autonomia. Não gosto do termo EAD (Ensino a Distância), porque se popularizou por baixo. Prefiro usar o termo ensino mediado por tecnologia. Uma coisa que estou defendendo são as escolas de tempo integral. Estou discutindo com empresários modelo novo de tempo integral, não que venha a substituir o presencial, mas que possa ser de ensino híbrido, ou seja, o aluno teria período com um dos turnos presencial, na escola, e o outro período ele é constituído por atividades não presenciais, mas articuladas com as atividades presenciais. E aí você tem o conceito de aluno de tempo integral, não necessariamente de escola de tempo integral.

Acredita então que em breve os alunos não irão mais para as escolas o tempo todo?
Ele (aluno) não precisaria. Isso pode, naturalmente, alavancar a questão de colocar o jovem com atividades educacionais ao longo do dia, dentro de conceito integral, mas que não precisa necessariamente ele ter a presença física na escola. Parte presencial é importante, porque traz competências como empatia, resiliência e colaboração. Importante conviver com pessoas, saber lidar com aqueles que pensam de maneira diferente. Isso, naturalmente, enriquece o próprio valor da democracia. Presencialmente desenvolve melhor a tolerância, que é importante para o mundo atual. Aposto neste sistema com atividades no contraturno, como aulas de reforço, que podem ser atividade assíncrona. Aluno liga, por exemplo, a TV para assistir a determinada aula ou vídeo que a escola disponibiliza sobre o que estudou pela manhã. Acho que a Covid, se por um lado trouxe este desafio da noite para o dia, traz também chance de reinventar a escola.

Esta atualização do sistema já era uma demanda?
Essa reinvenção os alunos vinham pedindo. E não é só na educação básica. No ensino médio, 550 mil jovens abandonam a escola por ano. Isso significa que a cada minuto um jovem abandona o ensino médio. E a escola é gratuita, então, não é por questão financeira. Por que ele deixa? Porque a escola, de certa maneira, não responde aos seus anseios. O jovem quer escola que caiba na vida. Uma escola que, de alguma maneira, lhe ajude a desenvolver o seu projeto de vida. Se ele não encontra isso na escola atual, ele abandona. E quando não abandona, não estuda e é reprovado. O Brasil perde, por ano, com abandono e com reprovação, cerca de R$ 25 bilhões. Sem falar no custo social. A gente tem hoje cerca de 1,5 milhão de jovens de 15 a 17 anos fora da escola. E estes jovens, mesmo antes da pandemia, são jovens que vão ficar sujeitos ao tráfico, à droga e à violência. Então, a escola precisava de chacoalhada para poder se reinventar, para sair do seu lugar comum, para poder ouvir mais os alunos. Acho que a Covid escancarou isso. Se sou secretário de Educação, não teria dúvidas de ter alguma coisa no orçamento para compra de laptops, notebook, celulares, enfim, para prover meus estudantes da cultura digital. As redes de ensino vão começar, a partir de agora, a entender que o lápis e o caderno do século XXI vão ser o notebook com internet, com banda larga. Mas quanto isso custa? Como disse Derek Bok, ex-reitor da (Universidade de) Harvard, “se você acha cara a educação, experimente a ignorância”. A gente gasta muito mal o dinheiro. Tem no 7º artigo do PNE (Plano Nacional de Educação) ferramenta de regime de colaboração. Fui o autor desta matéria no CNE (Conselho Nacional de Educação). Ela potencializa o regime de colaboração entre os municípios. A gente não pensa em trabalhar em escala para ganhar em preço e custo para sobrar dinheiro para outras coisas. A questão da merenda, a questão do transporte escolar. E a gente sabe que, lamentavelmente, às vezes o dinheiro público sai por esse ralo de maneira desonesta.

Preocupação entre os pais é saber se as escolas vão conseguir cumprir as 800 horas mínimas neste ano ou se existe a chance de o calendário letivo ultrapassar para 2021. O que pensa sobre isso?
Sou contra perder o ano letivo. Sou contra também reprovar alunos. Perder o ano quer dizer perder a batalha para a Covid. Todo esforço que gestores fizeram para reagir a esta situação não vai valer nada. Não vamos chegar ao fim do ano e esperar que os alunos tenham aprendido o que seria esperado ao longo do ano letivo. Quando voltar as aulas presenciais, a primeira coisa é fazer acolhimento, tanto os alunos como os professores. Saber como cada aluno, como cada professor superou a pandemia. Acho que a primeira semana é de muita integração, com participação dos pais. Depois, integrar esforços e fazer acompanhamento a partir dali. Como está a cabecinha de cada um? O papel do diretor e da secretaria de apoio às escolas no campo da saúde mental é importante. Depois, para cada série escolar fazer pequeno teste de avaliação para saber o que cada um aprendeu. A gente vai ter situação mais crítica e aquele que nada aprendeu. A esses que tiveram menor rendimento do ponto de vista do desenvolvimento, a gente tem que fazer esforço para ajudá-los a recuperar. Defendo a integração do ano letivo de 2020 para 2021. É até possível que o ano letivo se estenda até janeiro de 2021, mas, além da questão temporal da extensão do ano letivo, defendo que haja articulação de saberes. Que o planejamento de 2021 leve em consideração o planejamento escolar do ano anterior, ou seja, o aluno que está indo para o 7º ano do ensino fundamental faça nova avaliação. O pior de tudo seria jogar a toalha e dizer que o ano está perdido, porque aí a gente vai dizer que todos os alunos perderam.

Os municípios menores vão ter dificuldade grande para conseguir conciliar a grade com contraturno e aulas aos sábados e adequar isso ao orçamento que é apertado. Como fazer?
Aí entra o papel do MEC (Ministério da Educação), que tem que se fazer presente. A gente sabe que hoje o MEC está completamente desarticulado, com redes de ensino totalmente sem coordenação. Acho que de alguma maneira os secretários estaduais e municipais vão ter que ir até o MEC e dizer que é preciso programa de recursos para fazer contraturno. Acho que o MEC vai ter que redirecionar seu orçamento, dando prioridade para isso, que é mais urgente neste momento.

O senhor esteve perto de assumir o MEC no início da gestão do presidente Jair Bolsonaro. Por que não deu certo?
Esse é um tema que para mim são águas passadas. Foi momento em que eu fui de fato convidado. Naquela oportunidade conversei com várias pessoas de diferentes partidos políticos. Não sou filiado a partido nenhum. Quando tem isenção partidária, acho que ajuda você a colocar suas ideias sem contaminação partidária. Então isso sempre me ajudou muito a ter esse convívio com os diferentes. Mas houve pressão muito grande da bancada evangélica do Congresso, que queria o cargo, eram as bancadas que indicavam os ministros. Posso dizer que agradeço muito à bancada evangélica, que não me permitiu ir para o Ministério da Educação, porque, com certeza não duraria muito tempo ali, aliás, não sei nem se ia se efetivar, porque, por exemplo, eu dei ao Paulo Freire o título de professor emérito na Faculdade Federal de Pernambuco e como eu sempre tive visão bastante ampla, e para mim a história de Paulo Freire se confunde com a história da própria educação brasileira, negar Paulo Freire é negar a história da educação brasileira. Então não ia dar certo e eu diria que se acontecesse agora eu diria ‘não’, sob hipótese nenhuma. Acho que lamentavelmente o ministério está muito contaminado ideologicamente. O Olavo de Carvalho é hoje a pessoa que, de alguma maneira, entende que o MEC é dele. Tem uma influência absurda, seja na alfabetização, nos métodos que estão sendo colocados, então não daria certo. Mas eu vou ajudar sempre a educação, porque, para mim, é minha grande causa, independentemente de quem seja presidente.
 




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