Dança, para o coreógrafo andreense Sandro Borelli, não é o estado físico de celebração de um Fred Astaire nem a geometria semi-esportiva do salão. Coreografia é, acima de tudo, um instrumento de questionamento e de desmascaramento do gênero humano e de suas ações diante dos códigos da sociedade. Parece complicado. Mas nem tanto, conforme provam seus números, que sintonizam as angústias do homem em contorções e sons produzidos pelas vias respiratórias ou pelos choques dos corpos dos bailarinos. Precisa ver para crer? Então aproveite este fim de semana no Centro Cultural Diadema, que terá Borelli em dose dupla, neste sábado, com o espetáculo Gárgulas, e domingo, com A Metamorfose, ambos com entrada franca.
Desde o ano passado Borelli não mais dirige a FAR-15, companhia à qual esteve integrado durante sete anos e que o impulsionou a freqüentar o cenário da dança contemporânea do país. A partir de então, o artista fundou a Borelli Cia. e Gárgulas foi o espetáculo que marcou a estréia do novo grupo.
A teatralidade de Borelli permanece calada; nunca foi exatamente muda porque, afinal, o silêncio da humanidade não é congênito, foi a ela imposto por séculos e séculos de passividade até chegar ao emperramento do século XX e sua carência de utopias. E as obras do andreense buscam a perda de referencial ideológico do homem de hoje, seu comportamento passivo ante a grandes corporações e convenções - emocionais, sociais e econômicas. O efeito físico é o estágio final desse reconhecimento do homem como coisa, como saliência insignificante no processo histórico; seu corpo, o primeiro e último bem de sua existência, é palco do acerto de contas de si consigo mesmo.
Para tal, Borelli rastreou como inspiração principal de Gárgulas as telas do pintor Lucian Freud, britânico de origem alemã, e cujo sobrenome denuncia o parentesco com seu avô Sigmund, "o" psicanalista. Atualmente aos 82 anos, o artista plástico já havia fornecido material para Reflections (Self Portrait), montada pela companhia no ano passado. Freud, o neto, celebrizou-se por descrever plasticamente a anatomia humana como uma massa de modelar do desespero interior. São, em boa parte, corpos nus pintados em tons pastel, que obedecem a uma lei de gravidade inconseqüente e radical; tão apáticos (em sentido pictórico) quanto expressivos (nas formas).
Os tais gárgulas, figuras mitológicas incumbidas de guardar templos e que aparecem desde a arte genuinamente gótica aos planos de fundo da fictícia Gotham City (o reduto de Batman), representam a defesa do homem contra os ataques de si próprio. Gárgulas, as criaturas e o espetáculo, instalam-se como a projeção do desejo de autodestruição do ser humano.
Inquietações existenciais que mexem com Borelli desde há muito tempo. Evidência disso é o repertório de autores consultado pelo bailarino e coreógrafo em suas montagens, gente como os escritores Augusto dos Anjos e Franz Kafka - este último é a base da criação de A Metamorfose, o espetáculo exibido domingo e idealizado em 2002.
Na novela kafkiana, o protagonista Gregor Samsa transformava-se em inseto num processo de causas (aparentemente) abstratas e conseqüências irreversíveis. Por falta de comunicação entre seus pares, Samsa entrava em um ciclo de interiorização extrema. A metamorfose era sua implosão como peça da sociedade na qual ele já se sentia excluído. O gestual da coreografia procura capturar esse declínio da tolerância com o ser que não se adapta ao cartesianismo social e político do presente. Talvez esteja aí a razão de A Metamorfose não ser um espetáculo solo e pôr no palco mais de um bailarino representando Samsa: seria insuportável para um único recipiente coreográfico a dor e o drama da rejeição experimentada pelo homem-inseto de Kafka.
Borelli Cia. - Dança. No Centro Cultural Diadema - r. Graciosa, 300, Diadema. Tel.: 4056-3366. Gárgulas: sábado, às 20h. A Metamorfose: domingo, às 20h. Entrada franca.
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