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Laerte Coutinho: ‘Jornalismo não está em extinção; ele é necessário’
Luiz Carlos Fernandes
Do Diário do Grande ABC
26/01/2020 | 23:59
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Sofia Colucci/Divulgação


Uma das principais cartunistas do Brasil, Laerte virou referência na forma como trata a política com seus traços. Vários de seus desenhos são polêmicos e incomodam a classe dos políticos, mas, de outro modo, atraem a admiração de diversas pessoas, ainda mais jornalistas. Em momento no qual a classe é constantemente atacada pelo presidente da República, Laerte reage: “Não estamos em extinção. O trabalho do jornalista pode se reconfigurar, segundo as mudanças que acontecem, mas continua sendo necessário”. Em entrevista exclusiva ao Diário, a artista lembra passagem pela Tribuna Metalúrgica, do Grande ABC, ditadura militar e processo de mudança de gênero.

Como surgiu seu interesse pelas charges?

Foi pelo fato de ser uma das variantes do desenho de humor. Charges, cartuns, histórias em quadrinhos, desenhos animados, tudo isso me motivava. Eu gostava de desenho de um modo geral, mas em especial do de humor.

Quando publicou pela primeira vez?

Acho que foi em 1971, num concurso d’O Pasquim. Profissionalmente foi em 1972 ou 1973. Não lembro bem.

O que a levou a fazer charge política?

Foi quando me interessei por política. Deve ter sido na faculdade. Eu colaborava com o jornal do centro acadêmico. Ilustrava matérias, fazia pequenas histórias. Acho que comecei a perceber a possibilidade do comentário político através do desenho também. Nessa época publicamos a revista Balão, lugar para muitas experiências e aprendizados.

Em plena ditadura, em época de luta operária e início das greves em São Bernardo, você fazia charges para a Tribuna Metalúrgica e deu nova cara para o João Ferrador. Como foi trabalhar na Tribuna e dar essa nova vida ao personagem? O que ele representou para você? 

O João Ferrador, criação de Felix Nunes e vinhetado por alguém que me parece ter sido o Otávio, não tinha existência em quadrinhos. Foi o que fiz, criando algumas peças de campanha com o personagem. Fiquei bem satisfeita com esse trabalho, ainda mais depois de vê-lo numa camiseta vestida pelo Lula.

Em 1980, nasceu o PT, defendendo as questões sociais dos trabalhadores e, de certa maneira, mudando o cenário político, proporcionando novo eco aos artistas de variados segmentos. Dentre esse seleto grupo estavam artistas como você, Luiz Gê, Henfil, que se engajaram em luta para tirar o País da ditadura e oferecer ao povo o direito de votar para presidente. Como era fazer charge naquela época? 

Não fiz parte da fundação do PT, nem me filiei a ele. Tínhamos alguns pontos de dessintonia, em relação a sindicatos, a táticas de luta, a bandeiras específicas. Mas nos alinhávamos contra a ditadura e a favor da retomada da democracia. Meu ponto de vista, retrospectivo, é que durante algum tempo, sob a ditadura, parecia não haver fissuras entre nós. Parecia que havia grande inimigo e que éramos todas participantes de luta unívoca. O tempo e a dinâmica estabelecida já no governo (Ernesto) Geisel mostraram que tudo era mais complexo e que as visões e projetos para o País eram bem diversas, muitas vezes conflitantes. Humor e charge começaram logo a refletir esse cenário, inclusive pelo afastamento de vários profissionais.


Teve problemas com a censura nos governos Geisel e Figueiredo? Como driblá-los? 

Eu trabalhava na Oboré, prestando serviço aos sindicatos, e na Gazeta Mercantil. Na Oboré, quando havia problema, era com a própria instituição, como aconteceu em algumas intervenções do governo. Na Gazeta Mercantil, embora chamássemos de charge, o que eu fazia era ilustração de matérias de economia, assunto de que não entendia muito. A parte política do comentário que pratiquei era bastante anêmica. Por isso, não fui censurada, como colegas n’O Pasquim, Opinião, Movimento, Versus etc.

O povo pôde votar para presidente em 1989, mas o PT só chegou ao poder nacional em 2003, com Lula. Apesar dos elogios às ações sociais dos governos petistas, aconteceu tudo aquilo que a gente sabe: Mensalão, impeachment de Dilma e prisão de Lula. Você se decepcionou com o PT ou com algumas figuras importantes do partido? 

A pergunta é marota, porque se baseia em processos questionáveis, como a Ação Penal 470 – chamá-la de Mensalão já é aderir a um veredito fortemente influenciado pela mídia –, o impeachment irregular de uma presidenta e a prisão política de Lula, num processo que o tempo demonstrou ter sido viciado e corrupto. Eu não me decepcionaria com o PT por esses motivos, mesmo que fosse petista. Minhas críticas ao desempenho do partido vêm de outras questões, como Belo Monte, por exemplo – um resultado exemplar de como a necessária negociação com forças do empresariado e das finanças pode passar do ponto aceitável e entrar pelo desastre humano e ambiental. Um desastre que não é exclusivo, claro, foi apoiado e partilhado pelos governos (Michel) Temer e (Jair) Bolsonaro.

Depois das Diretas Já, por algumas décadas a charge no Brasil parecia ter perdido a função. Delfim Neto colecionava as charges. Paulo Maluf dizia: ‘Fale mal, mas fale de mim!’ O Laerte se transformou na Laerte e muita gente que acompanhava seu trabalho passou a dizer que você reduziu o tom crítico à política para dar vazão a charges sobre sexualidade. Mas como Fênix volta com força total, mostrando a grande artista que sempre foi. Você concordou com essas críticas? 

Não concordo com a premissa da pergunta… a charge teria perdido a função “por algumas décadas”? Só porque o Delfim, movido por vaidade e cinismo, colecionava charges (desde antes das Diretas-Já, aliás) e o Maluf não se importava (não mesmo?) se falassem mal dele? Acho que estão misturados fatos e processos. Acho que se pode falar em linhas de atuação jornalística diferentes, em correntes de opinião política no País das quais as pessoas que fazem charge participaram de várias maneiras. O meu processo pessoal de autoinvestigação no terreno do gênero é ainda outra coisa... Retomei a atividade de fazer charge a convite da Folha (de S.Paulo) e depois de alguma relutância. Não é posição confortável para mim essa de emitir julgamentos e opiniões (ainda que enriquecidas e amparadas em construções de humor). Mas aceitei, achando que a experiência no Jornal do Norte, nos anos 1990, poderia iluminar de alguma forma essa fase de agora. Ainda não tenho certeza se são vasos comunicantes.

De que forma governo como o de Bolsonaro contribui para seu processo criativo? 

De forma nenhuma. Este governo é inimigo de toda forma de cultura, conhecimento, produção intelectual e exercício de democracia. É algo que precisa ser derrotado politicamente. Se a ideia na pergunta é compreender essa tragédia como “estímulo” à atividade crítica, discordo. Processos destrutivos, censórios, entreguistas e irracionalistas não ajudam em nada.

Em 1974, sua charge O Rei estava Vestido ganhou o primeiro prêmio no 1º Salão internacional de Humor de Piracicaba e, 44 anos depois, em 2018, releitura da charge (mesmo desenho com o texto trocado, para ‘Não foi golpe!’ ) foi utilizada para o cartaz do evento. Hoje o atual ‘rei’ do Brasil está nu (até pelo fato de seus filhos, os atuais príncipes, estarem sob investigação de corrupção)?

A releitura da charge foi ideia minha, mesmo – não sei se isso ficou claro. São várias nudezas que hoje se podem apontar... O rei, a mídia, a Operação Lava Jato – é striptease geral.

Qual personagem seu que mais marcou? 

Eu parei de fazer personagens em 2005. Até então, meus favoritos eram sempre aqueles nos quais estava trabalhando no momento. Mesmo os Piratas (do Tietê), que deram nome à tira, me interessavam mais quando eu estava construindo alguma história deles. 

Seu filho Rafael Coutinho é um grande artista, com estilo próprio. Como você o ajudou? 

Espero ter ajudado! Mas isso quem pode dizer é ele. Não sou modelo de pai nem de tutora, mas concordo muito com a colocação: ele é um grande artista.

Bolsonaro disse que jornalista é espécie em extinção. Você concorda? Enxerga saída? O que pensa do futuro do artista gráfico? 

A frase desse sujeito equivale a declaração de guerra, coerente com todas as atitudes que ele tem tomado no seu combate à informação e à inteligência. Não estamos em extinção. O trabalho do jornalista pode se reconfigurar, segundo as mudanças que acontecem – tecnológicas, políticas, econômicas –, mas continua sendo necessário e objeto de interesse por grande parte dos estudantes. Quanto aos artistas gráficos, ai de mim. Quem sou eu para dar parecer futurológico? Minha formação é de tempo em que nem xerox havia. Venho me atualizando atropeladamente, sempre atrasada em relação às novidades. 

Você adotou mudança de gênero quase na terceira idade. Como foi esse processo? 

Meu processo transgênero é sui generis, como, na verdade, todo e qualquer processo transgênero. Tinha questão bloqueada em relação à homossexualidade, que me custou décadas para superar. Quando consegui, acho que atingi estado de paz e liberdade pessoal que me permitiu considerar a expressão de gênero também. E lá vim eu. Se isso só foi possível chegando nos 60 anos, ué, é o que temos! Minha família reagiu muito bem, como sempre achei que aconteceria, colocando questões, mas mantendo intacto o afeto.

Como vê o tratamento ao público trans no Brasil e pelo governo? 

Se estamos falando de público, num sentido de mercado, não tenho muito o que dizer. Já a população vive etapa de lutas, com conquistas e derrotas. Acho que há avanços quando pensamos que, hoje, a vivência da transgeneridade é vista por muito mais gente como parte dos direitos das pessoas no Brasil – assim como as diversas orientações e condições sexuais. Por outro lado, é clara a agressividade com que o governo desmonta os equipamentos institucionais com que contávamos para nossa defesa, além de se ausentar quanto ao crescimento da violência homotransfóbica – estimulada também por discursos e atitudes de governantes e apoiadores.

Esse processo de mudança de gênero causou algum contratempo em seu trabalho? 

Pessoalmente, o que me trouxe algum contratempo foi mudança anterior, quando promovi mudanças radicais no modo como produzia meu trabalho. Ser vista como transgênero não me prejudicou profissionalmente. Claro que também sou alvo de ódio transfóbico, mas não em grau que não permita controle. 




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