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Em busca da cura
Por Marco Borba
Do Diário do Grande ABC
29/10/2006 | 22:14
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Responsável pela disciplina de genética e reprodução humana da Faculdade de medicina do ABC, a ginecologista e obstetra Angela Mara Bentes de Souza avalia que as pesquisas com células-tronco no Brasil ainda caminham lentamente e estão atrasadas em relação a outros países. Um dos fatores apontados por ela é a falta de investimentos de recursos públicos e privados.

A Faculdade de Medicina começou a montar seu laboratório de pesquisas com animais este ano, mas segundo a médica, depende de recursos, algo em torno de 800 mil dólares, para que futuramente possa iniciar estudos com seres huanos. Ainda não há previsão de quando isso possa ocorrer. “As empresas que fazem doações podem abater até 2% do lucro real. Mas fazer doação ainda é algo muito complicado no Brasil. Para o país avançar nesses estudos é preciso que as empresas invistam, para tirar a responsabilidade apenas do governo.”

A Lei de Biossegurança do país foi regulamentada no ano passado. A legislação brasileira permite apenas que sejam realizadas pesquisas com células-tronco de embriões congelados há mais de três anos.

DIÁRIO - O que são células- tronco?
ANGELA - São células do organismo de qualquer ser vivo. São indiferenciadas, não têm uma função específica. Podem atuar no fígado, no sistema nervoso ou no coração. Servem basicamente para regenerar algum desses órgão. Elas possuem grande capacidade de multiplicação.

DIÁRIO - Existem quantos tipos de células?
ANGELA - Temos as embrionárias, encontradas no sangue do cordão umbilical. São as mais promissoras, porque a capacidade de se transformarem em uma célula específica, óssea ou cardíaca, por exemplo, é maior. As outras são as células somáticas, encontradas nos tecidos de uma pessoa adulta. São retiradas da medula.

DIÁRIO - E como são feitos os testes com tecidos danificados?
ANGELA - As células são retiradas da medula e injetadas no organismo doente.

DIÁRIO- E essas células servem para reparar quais órgãos?
ANGELA - O coração, por exemplo. Quando o paciente tem um enfarto, o sangue deixa de circular por alguns vasos, diminuindo a passagem de oxigênio e causando a morte das células. Aí é preciso reparar a área atingida. Então, o que essas células-tronco fazem? Elas chegam lá indiferenciadas, ou seja, sem uma função definida. Depois de algum tempo se transformam em células cardíacas e subtituem as células mortas.

DIÁRIO - E elas são usadas também no tratamento de pessoas com lesões na coluna?
ANGELA - Sim. Mas é preciso observar que alguns casos dão certos, outros não. Os testes realizados pelo mundo afora ainda não apontam o que é preciso ajustar para que todos os casos dêem certo. Nos testes, você identifica e separa as céulas tronco e as transplanta para o local do trauma. Tem pacientes que tem uma regeneração muito boa, que voltam a ter movimentação e podem até andar. Outros, não respondem.

DIÁRIO - E, em relação a outros países, como caminha esse tipo de pesquisa no Brasil?
ANGELA - Ainda são poucos os estudos, mas os resultados são promissores. É claro que são pesquisas com resultados iniciais, porque você tem que selecionar muito bem os pacientes. Acho que na parte clínica nós estamos muito atrás. Precisamos ainda de laboratórios para dar suporte a essas pesquisas clínicas.

DIÁRIO - Então faltam espaços e investimentos público e privado nessa área?
ANGELA - Exatamente. Para que a gente consiga levar essas pesquisas mais adiante.

DIÁRIO - Vocês criaram esse laboratório de pesquisa no início deste ano. Como está funcionando?
ANGELA - Já era para estarmos num estágio mais avançado. Demorou um pouco porque para uma empresa doar sem ter o benefício fiscal é muito complicado. E a doação não é pequena, envolve a compra de equipamentos caros.

DIÁRIO - O laboratório conta com esses equipamentos?
ANGELA - Nós temos uma parte dos equipamentos. Temos o laboratório de genética da faculdade. Precisamos de um laboratório para pesquisas com animais. Estamos na parte de cultivo, de caracterização de espécie celular.

DIÁRIO - A legislação brasileira permite que sejam feitas pesquisas apenas com embriões congelados há mais de 3 anos. Como é que a senhora avalia essa questão? Há o risco do uso discriminado de embriões?
ANGELA - É extremamente complicado, porque o estudo da célula-tronco embrionária envolve a parte ética, religiosa e do conceito de como começa a vida e se nós temos algum direito de manipulação disso. Infelizmente nós sabemos que o lado comercial pode ser muito forte. Por isso tem de haver essa regulação, para se evitar o comércio e a falta de controle. Há países que não permitem nenhum tipo de manipulação, porque dentro da pesquisa com célula-tronco embrionária existe outro ramo, que se chama clonagem. São dois tipos, a clonagem terapêutica e a reprodutiva. Esta última é para criar um novo ser vivo, como a ovelha Dolly. Na terapêutica é ter este embrião só até a retirada da massa celular interna que vai originar as células-tronco. Depois esse embrião é destruído.

DIÁRIO - Essa relutância em alguns países tem natureza religiosa. Também é assim no Brasil?
ANGELA - Existe sim. O Brasil é um país muito católico, é muito religioso. Então isso é muito complicado de ser colocado para a população. Os países que não permitem o desenvolvimento de linhagem, ou seja, criação de um número grande de células-tronco, ficam muito atrás no desenvolvimento tecnológico.

DIÁRIO - O Brasil está atrasado?
ANGELA - Sim, porque a maioria das pesquisas no Brasil está voltada para células-tronco somáticas, que envolvem destruição do embrião.

DIÁRIO – Elas caminham paralelamente ou uma está mais adiantada que a outra?
ANGELA - A com célula-tronco de adulto está muito mais adiantada do que a feita com cordão umbilical. O que precisa é a criação no país de um banco público de sangue de cordão umbilical, para avançarmos mais nessas pesquisas. Assim podemos identificar nessa diversidade que temos de população doadores compatíveis nos casos em que é preciso fazer transplantes.

DIÁRIO - Alguns institutos estão convocando pessoas para participarem desse tipo de pesquisa. A população ainda é muito receosa?
ANGELA - No mundo eu não saberia dizer, mas julgando pelas palestras aqui da faculdade percebemos que as pessoas querem, porque todo mundo tem algum caso na família ou algum amigo que tem ou que teve algum problema.

DIÁRIO – Não há o risco de as pessoas que aguardam transplante saírem da fila de espera na medida em que concordam em participar desses estudos?
ANGELA - O critério de seleção desses pacientes tem que ser muito rigoroso, porque não se pode colocar esse paciente num grau de risco maior do que já tem. Como esses projetos passam pelos comitês de ética de quem está propondo a pesquisa, a comissão avalia exatamente essas questões. Como por exemplo, se deixa na fila de espera, como vai estar daqui a 2 ou 3 anos.

DIÁRIO – E quando começaram essas pesquisas no Brasil?
ANGELA - Há pelo menos 15 anos que a gente faz transplante de medula e hoje é a forma terapêutica eficiente de tratamento nas doenças hematológicas e aos poucos isso foi aparecendo.

DIÁRIO – Aqui no laboratório da Faculdade de Medicina os estudos são feitos com animais?
ANGELA – Por enquanto sim.

DIÁRIO – E já dá para dizer alguma coisa sobre esses estudos?
ANGELA – Nós temos alguns resultados que são promissores, mas são preliminares. Precisamos fazer ainda alguns testes que confirmem o que é possível reproduzir com outras espécies, Mas essas informações são tratadas com muito cuidado, até para ter credibilidadade.

DIÁRIO - Quando vocês pretendem trabalhar com pacientes?
ANGELA - Agora estamos encontrando algumas dificuldades, porque os projetos, precisam de equipamentos mais caros e enquanto não tivermos as doações, não temos como dar condições para os pesquisadores clínicos começarem seus projetos.

DIÁRIO - E quanto investimento seria necessário para dar continuidade a esse trabalho?
ANGELA - Algo entre 800 e 900 mil dólares. É um valor alto.

DIÁRIO - As empresas estão dispostas a liberar o dinheiro?
ANGELA - O primeiro contato tem sido muito bom. Eles têm sido receptivos. Estamos nessa fase de mandar os projetos e elas precisam analisar, o que é corretíssimo. Existe a preocupação de ligar o nome da empresa com uma coisa que seja interessante para a empresa, que não vá denegrir sua imagem. Eles são muito criteriosos com relação a isso. Espero que o resultado seja positivo, porque o apelo social em pesquisa com a célula-tronco é muito grande.

DIÁRIO - O governo brasileiro contribui nesse processo?
ANGELA - O papel do governo é muito complicado, porque a quantidade de verba que eles alocam para a pesquisa é muito pequena e é um processo demorado, acho que se nós formos depender totalmente do governo, nós vamos ficar muito largados, nunca vamos conseguir fazer nosso trabalho. Nos Estados Unidos, dois terços da verba alocada para pesquisa é privada. Essa cultura nós precisamos adquirir aqui no Brasil. Fazendo isso, podemos expandir pesquisas sem necessariamente ter verba federeal, o que para nós seria muito bom.



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