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Livro esmiúça vida e obra de Beethoven
João Marcos Coelho
Especial para o Diário do Grande ABC
06/01/2002 | 16:27
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“Não me interessa o que Beethoven fazia quando não estava compondo”. A frase do pianista e musicólogo norte-americano Charles Rosen – certamente uma das mentes privilegiadas da atualidade que melhor pensam a música – rechaça, de certo modo, a excessiva invasão de privacidade a que vêm sendo submetidos, ao longo dos séculos, grandes compositores como Bach, Beethoven, Schubert, Schumann, Chopin e Brahms, entre muitos outros. O que interessa, claro, é a música que produziram.

Mas a curiosidade é talvez a maior das características dos seres humanos, para o mal e para o bem, sabemos. Richard Wagner morreu em Veneza nos braços de uma prostituta. Franz Schubert, homossexual, morreu em conseqüência de uma prosaica gonorréia. Isso altera o modo com que ouvimos duas imensas obras-primas como O Anel dos Nibelungos ou o ciclo de canções Winterreise? Possivelmente não. Mas conhecer melhor a vida de um criador do porte de Schubert, Wagner ou Beethoven sem dúvida nos aproxima deles, e nos dá ainda mais curiosidade para ouvir mais suas obras.

O escritor norte-americano Russell Martin atirou no que viu e acertou no que não viu. Quis apenas contar uma historinha cheia de lances picarescos e interessantes em que o personagem seria eventualmente Ludwig van Beethoven, o compositor mais emblemático da história da música ocidental. Mas construiu um livrinho precioso, que em 300 páginas esmiúça a vida e um pouco de sua obra, intercaladas com as peripécias por que passaram, nestes últimos dois séculos, exatos 582 fios de cabelo do compositor. Assim, quem está apenas atrás de uma boa trama detetivesca aprende a gostar de Beethoven. Por isso, o livro ultrapassa o nível do inócuo entretenimento.

Odisséia – O caso começa com o estudante de música Ferdinand Hiller, aos 15 anos, honrado com a chance de acompanhar seu professor de composição, Johann Nepomuk Hummel, em três visitas a Beethoven em março de 1827. O compositor vivia seus últimos dias, acometido de toda sorte de males. Sofrera quatro punções no abdome, e o mau-cheiro era tamanho que atraía muitas baratas amontoadas na palha ao chão do quarto, em Viena. Hiller ainda teve a chance de homenagear o mestre morto no dia seguinte ao de sua morte, 28 de março. Estendido na cama, os longos cabelos em desalinho, jazia Beethoven. Hiller não resistiu, cortou e guardou um chumaço de cabelos em uma caixinha de madeira.

Os Cabelos de Beethoven (Editora Globo, 300 págs.) conta a trajetória destes 582 fios desde aquele momento trágico até o dia 12 de dezembro de 1995, quando um grupo de cientistas liderados pelo doutor Guevara e o corretor de imóveis Ira Brillant começava a abrir a tal caixinha. Os dois admiradores fanáticos colecionaram tudo sobre Beethoven, de partituras a cartas, culminando com os cabelos comprados em um leilão na Sotheby’s de Londres.

Martin alterna nos capítulos a história da mecha de cabelos com um roteiro biográfico sobre o compositor, do nascimento até a morte, passando pela mudança de Bonn, onde nasceu, a Viena, o Testamento de Heiligenstadt em 1802, as grandes obras, da Heróica à Nona, a única ópera, Fidelio, as sonatas para piano e os quartetos, sobretudo os últimos.

Ferdinand Hiller, morto em 1885, conviveu com os grandes românticos, como Mendelssohn, Liszt, Schumann e Chopin, e também com seu talento limitado. “Você ainda compõe?”, perguntou-lhe um irônico amigo músico no fim de sua vida. “Componho sim, porque me dá prazer, e também porque o papel pautado é muito barato”. Seu bem mais precioso, Ferdinand doou ao filho Paul, que o carregou consigo até os lances mirabolantes da caixinha na Segunda Guerra, em um pequeno porto dinamarquês onde houve de tudo – perseguição dos judeus pelos nazistas, lances de heroísmo dos habitantes locais e a troca dos cabelos de Beethoven pelo direito à fuga para lugar seguro em outubro de 1943.

Envenenamento – Os exames nos fios de cabelo realizados por uma enorme equipe multidisciplinar de cientistas propiciaram, de certo modo, uma reviravolta na explicação oficial sobre as causas das múltiplas doenças que acometeram o compositor, sobretudo sua surdez. A descoberta teve um autor: Walter McCrone, um dos maiores microanalistas dos Estados Unidos. Ele foi responsável por vários feitos retumbantes no domínio da microanálise: nos anos 80, demonstrou que o Santo Sudário de Turim fora pintado no século XIV e não era, portanto, a veste fúnebre de Jesus; e também desmentiu cientificamente, por meio da análise de uma amostra do cabelo de Napoleão Bonaparte, que este tivesse morrido envenenado por arsênico, como se supunha.

Pois McCrone encontrou quarenta vezes mais chumbo nos cabelos de Beethoven em relação às quantidades normalmente aceitas – mesmo para os padrões do início do século XIX, quando ainda não se tinha consciência clara dos males da ingestão excessiva de chumbo. Mais exatamente, “a quantia média de chumbo nos cabelos do compositor fora 42 vezes maior que a média. Walsh acreditava que as evidências sugeriam fortemente que Beethoven havia sido maciçamente intoxicado com chumbo na época de sua morte, assim como durante dezenas de anos antes.”

A doença provocada pelo chumbo é o saturnismo. E Beethoven apresentou todos os sintomas desse mal, como problemas gastrintestinais, gota, dores reumáticas, icterícia, dores de cabeça, perda de apetite, irritabilidade e déficits visual e auditivo, entre outros. Fica também claro que o compositor sofreu um tratamento bárbaro e desumano, mesmo para os padrões médicos da Viena das primeiras décadas do século XIX (não há um traço sequer de morfina nos fios de cabelos; e morfina era normalmente utilizada para amenizar as dores dos pacientes terminais). Além disso, ele costumava tomar, sobretudo na última década de vida, entre 1817 e 1827, uma garrafa inteira de vinho em cada refeição (e na época costumava-se misturar chumbo ao vinho para diminuir seu amargor).

Realização positiva – Os Cabelos de Beethoven termina no segundo semestre do ano passado, quando iniciaram-se as pesquisas juntando as descobertas propiciadas pelos fios de cabelo com partes do crânio do compositor. Martin conclui: “Embora a comparação de DNA dos cabelos e do osso ainda esteja sendo finalizada, parece incontestável agora que ambos, cabelos e osso, provêm do mesmo único e verdadeiramente notável ser humano”.

Correr décadas atrás de objetos ligados a Beethoven, como fizeram Ira Brillant e Guevara, pode ser apenas coisa de fanáticos. Mas, no caso deles, rendeu um Centro de Beethoven de Pesquisas integrado à Universidade do Arizona e certamente faz avançar o estudo da obra do compositor da Nona Sinfonia. Eles transformaram em realização positiva o que seria apenas coisa de fã-clube.




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