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A busca pelo recomeço

Adolescentes internados nas sete unidades da Fundação Casa na região prestaram o Enem

Vanessa de Oliveira
18/12/2017 | 07:12
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André Henriques/DGABC


Segundo o educador e filósofo brasileiro Paulo Freire (1921-1997), “a Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo”. O pensamento condiz com a vontade de 18 jovens – de um total de 378 – atendidos nos sete centros socioeducativos da Fundação Casa no Grande ABC. Eles pretendem usar a nota do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), cujas provas para pessoas privadas de liberdade foram aplicadas durante a semana passada, como oportunidade de recomeçar.

A equipe do Diário conversou com três internos que participaram do exame nacional, hoje principal método de ingresso em instituições públicas de nível Superior e que também facilita o acesso a universidades privadas. Os jovens são atendidos nas unidades de Santo André, São Bernardo e Diadema.

Paulo, 18 anos, está há sete meses na Fundação Casa de Santo André. Esta é a segunda segunda vez que o jovem, que cursava o 3º ano do Ensino Médio quando foi apreendido, perde o direito de viver em liberdade, neste caso devido ao crime de roubo de carro. “Desde quando cheguei venho me preparando para o Enem. Meu maior sonho é cursar Química, pois desde pequeno sempre gostei de fazer experimentos.”

Em liberdade, Paulo fazia aula de informática e ajudava a mãe em um mercado pequeno, até que, segundo ele, as despesas ficaram maiores do que os lucros e ela precisou fechar o comércio. A dificuldade financeira aliada às consideradas “más amizades” o levaram a roubar. “O crime não vale a pena”, declara.

Gustavo, 17, também foi apreendido após roubar um veículo e, há cinco meses, está na unidade de São Bernardo. “Minha família sempre teve boas condições, mas com as más companhias acabei indo por esse caminho. Não ganhei nada, só perdi”, considera.

O adolescente revela que já havia se inscrito no Enem antes de sua apreensão. “Quando cheguei (à Fundação Casa) perguntei se dava para fazer a prova aqui. Quero fazer faculdade de Administração e também um curso de inglês”, projeta. Para alcançar o desejo, ele afirma ter aprendido por onde deve seguir. “Lá fora a gente erra para aprender. Aqui aprende para não errar. Vou insistir no estudo, porque sem isso não serei nada.”

Ricardo, 17, interno da Fundação Casa de Diadema, comenta que se preparou para o Enem desde que chegou à unidade, há cinco meses. “Fui recordando o que tinha esquecido, lendo livros e estudando sempre que tinha oportunidade aqui”, relata ele, que cumpre medida socioeducativa pela segunda vez por roubo. “Quero ser engenheiro civil. Minha meta é progredir na vida e adquirir cada vez mais conhecimento.”

O baixo número de adesões ao Enem – 4,76% dos internos atendidos nas sete unidades da Fundação Casa na região – é reflexo da defasagem escolar dos jovens. De acordo com o Estado, 85,71% dos adolescentes não estão na série ideal de acordo com a idade. Isso porque boa parte dos meninos abandonou os estudos quando estava em liberdade.

Aprendizagem dos internos precisa ser aprimorada, dizem os especialistas

Para especialistas ouvidos pelo Diário, o sistema educacional da Fundação Casa necessita de aprimoramento para que a meta de reinserção desses jovens à sociedade seja, de fato, exitosa. “A educação na Fundação Casa acaba sendo precária, porque mistura adolescentes de várias séries e de diferentes estágios educacionais”, ressalta o coordenador da comissão da criança e do adolescente do Condepe (Conselho Estadual de Direitos da Pessoa Humana) Ariel de Castro Alves.

A estrutura do ambiente também é fator que dificulta o trabalho, aponta o especialista. “As salas de aulas são apertadas, com pouca ventilação e geralmente não possuem os recursos pedagógicos necessários.”

Outro ponto destacado por Alves é ausência de amparo ao adolescente quando ele deixa o sistema socioeducativo. “Após esses jovens saírem (da unidade), eles não recebem apoio, porque as prefeituras e o Estado não possuem programas de apoio aos egressos da Fundação Casa”, ressalta.

Para o professor Roberto da Silva, da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo), a Fundação Casa deveria trabalhar de maneira complementar ao que a escola já faz, e não pretender substituí-la no período em que o adolescente passa internado. “A Fundação Casa assume a tarefa da escola, mas deveria trabalhar no sentido de suprir as necessidades de escolarização e não de substituí-la”, diz ele, destacando a necessidade de se reatar laços escolares com a escola de origem do jovem. “Quando o adolescente sai da internação, ele é transferido para outra escola que não é a dele. Não criam o vínculo necessário.”

Prova do Encceja ocorrerá nesta semana

Prova do Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos) será aplicada, entre amanhã e quarta-feira, para aqueles internos que desejam a certificação de conclusão dos ensinos Fundamental e Médio. Neste ano, 100 adolescentes das sete unidades da Fundação Casa da região devem realizar o exame.

Diego, 17 anos, está na unidade de Santo André há nove meses, em sua terceira passagem, por roubo. “Fazia pela emoção, adrenalina”, fala. O jovem abandonou a escola ainda no 4° ano do Ensino Fundamental. “Não gostava de estudar, preferia ficar na rua.”

Ainda em liberdade, Diego revela que um dos seis irmãos insistia no conselho de que ele deveria se dedicar aos estudos. Na Fundação Casa, tendo que acompanhar as aulas como parte da obrigação diária, ele diz ter assimilado a lição. “Quero seguir a vida da melhor forma. No futuro me vejo trabalhando de terno, com a minha casa. Me vejo uma pessoa boa.”

Leandro, interno da Casa São Bernardo, deixou os estudos no 6º ano do Ensino Médio porque queria apenas trabalhar. “Entregava marmita e pizza, mas caí em uma ilusão e vida de fantasia e fui pego após assaltar uma loja”, conta ele, que está na unidade pela primeira vez, há seis meses.

O adolescente lembra que a mãe insistia para que estudasse. “Sempre ignorei o que ela dizia e, agora, estou onde estou. Em alguns aspectos perdi, mas em outros ganhei, pois a escola aqui está sendo uma reflexão”, diz. “Estou feliz com a oportunidade de fazer o Encceja e, quando sair daqui, que possa colher os bons frutos dele”, completa o menino, que deseja fazer curso de Mecatrônica.

Uma tentativa de latrocínio levou Bruno, 16, à Fundação Casa de Diadema, há quatro meses. O jovem parou os estudos no 9º ano do Ensino Fundamental, sem ser aluno assíduo. “Gostava de faltar para ficar na rua ou para sair com alguma menina”, relata.

Neto de avó professora, com quem vivia antes da reclusão, ele tem lembrança de um conselho que ouvia dela frequentemente e que agora tem ficado mais claro. “Ela dizia que podem tirar tudo da gente, menos o conhecimento.” E foi a partir do aprendizado dessa lição que ele deseja “vida nova”. “Eu tinha uma barbearia e quero ser administrador de empresa, para administrar o negócio melhor.”

Todos os jovens entrevistados foram identificados com nomes fictícios. 




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