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Meu ídolo ficou velho

É como se fosse uma projeção de si próprio o rosto enrugado do artista, cuja existência aqui nesta planície míngua a cada dia, tal qual a sua

Rodolfo de Souza
22/06/2017 | 07:22
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Quando chega ao seu conhecimento que seu ídolo passou dos setenta anos, você que há muito mergulhou de cabeça nos cinquenta, perturba-se por se lembrar do quanto vibrou com suas canções e que isso já vai longe. Apesar de ser mesmo uma tendência esse susto, sobretudo, se o tal famoso pertencer ao sexo oposto, cujo sentimento, ainda mais forte por causa da atração natural, vem para lhe mostrar aquilo que o espelho se esforça por revelar, sem muito sucesso. É como se fosse uma projeção de si próprio o rosto enrugado do artista, cuja existência aqui nesta planície míngua a cada dia, tal qual a sua.

E foi justamente essa sensação que me bateu forte no peito, dia destes, ao me deparar com a minha musa de outrora, ternurinha das jovens tardes de domingo, numa reportagem da TV que anunciava seu septuagésimo primeiro aniversarinho. Que linda! E pensar que há bem pouco tempo eu a consideraria uma velha se a visse pessoalmente. Mas os anos passaram para mim também, assim como para você, leitor de longa data.

Deslumbrado como sempre, entretanto, não pude deixar de me curvar ao seu encanto e à sua voz que, associada ao seu estilo, muito me emocionou e conduziu para os dias em que me despedia da infância para inaugurar a adolescência, época de ouro de todos nós, momento em que os ímpetos encontram-se em ebulição num torvelinho de emoções capaz de sacudir o relacionamento com qualquer outro ser, de mesma idade ou não. Tempo bom e fugaz este, de entrega total às paixões e aos ídolos.

Ciente de tudo isso, contudo, ainda me causa perplexidade a constatação de que as décadas passaram para o veterano aniversariante, artista famoso, ídolo de algumas gerações, o qual me pareceu, a princípio, sujeito contemplado com a eternidade, com o viço dos vinte anos a acompanhá-lo para sempre. Pura bobagem, uma vez que é notório o final iminente. Talvez o hábito de mitificar a figura conhecida na mídia, nos torna assim meio abobalhados quando, depois de anos sem vê-lo, nos deparamos com uma cara amarrotada, marcada pela implacável passagem do tempo. Sem falar na grossa camada de maquiagem que fingimos não perceber, claro.

Noutro dia soube também da morte prematura de outro astro da música. Do nada. Fiquei chocado, sem entender esse mecanismo cruel que nos toma o ídolo e nos deixa órfãos de suas canções. Então, me flagrei ainda mais chocado por me lembrar que fora submetido à mesma crueldade quando o destino, com sua mão daninha, arrebatara sem piedade a minha mãezinha, mais jovem que o cantor, e que jamais experimentara, deslumbrada, o assédio dos fãs.

Subitamente, então, acordo do meu devaneio, dou por encerrada esta reflexão carregada de inutilidade que deita por terra qualquer pretensão de se conceder vida eterna a quem quer que seja. Afinal, estamos todos no mesmo barco enferrujado, famoso ou não.
 




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