Cultura & Lazer Titulo
Pontualidade suíça
Cássio Leite Vieira*
Ciência Hoje/RJ
04/10/2010 | 08:31
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Planejamento é algo sério na Suíça. Diz-se que o motivo de não haver catástrofes no país é porque elas não foram planejadas. Engatando na piada, fica tentador acrescentar: se fossem, teriam dia, hora e, principalmente, minutos para começar e terminar.

A Suíça não é a terra dos relógios por acaso. Horário parece ser obsessão (saudável) nacional - por lá, trens das 11h39 saem às 11h39.

Na política suíça de transportes, carros e caminhões são inimigos públicos. Portanto, devem ser limitados - ou eliminados.

"Queremos que o suíço nem mesmo tenha carro. Se tiver, que o use o mínimo possível", diz Thomas Kellenberger, porta-voz da ZVV, companhia estatal que supervisiona, planeja e gerencia os transportes no cantão de Zurique.

Há também a lista dos queridinhos da hora: trens, bondes e barcos - teleféricos, obviamente secundários, são também bem vistos. Aviões parecem um mal necessário. O povo suíço é o que mais anda de trem no mundo: em 2007, a média anual era de 2.103 quilômetros (em segundo, estão os japoneses, com 1.976).

Eu sou também... - No quesito transportes, o cantão de Zurique, o mais populoso do país, é de dar inveja aos próprios suíços. Filosofia norteadora: "Ein ticket für alles" (Um tíquete para tudo). Ou seja, transporte totalmente integrado nas 45 zonas do cantão. E pode-se comprar, com desconto generoso, um bilhete para o ano todo.

É o único cantão suíço com essa integração. O importante é sair de um lugar (casa, trabalho etc.), andar no máximo 250 m (distância estabelecida por lei), entrar num meio de transporte, fazer baldeações (se necessário) e chegar a outro lugar (de preferência, bem perto da porta). Tudo isso, no menor tempo possível - trens e bondes podem atrasar até três minutos; mais que isso, a empresa é multada. Mas 98% dos meios de transportes são pontuais.

A ZVV tem estrutura superenxuta: 35 pessoas. A estatal lida com orçamentos respeitáveis: no biênio 2009/10, foram 700 milhões de francos suíços (cerca de R$ 1,2 bilhão). É ela que recolhe o dinheiro dos bilhetes e o repassa para as oito empresas privadas do sistema de transportes. Tarifas, por sinal, são subsidiadas: por ano, o governo cantonal desembolsa cerca de US$ 600 milhões (40% do total de gastos) para fazer o sistema rodar.

Metrô? Referendo cantonal de 1960 determinou: caro e lugar sinistro, propenso a criminosos. Optou-se pelo sistema ‘S-bahn' (basicamente, sistema de trens suburbanos). Foi resposta para o crescimento desenfreado de carros na década de 1960 e na seguinte. Kellenberger diz que o tráfego estava se tornando inviável nas grandes cidades - bem, o adjetivo ‘inviável' talvez soasse cômico para aquele morador de São Paulo (SP) cujo congestionamento matinal começa na saída da garagem do edifício.

O buraco é mais embaixo - De todas as iniciativas de transporte na Suíça, o túnel São Gotardo é a que mais impressiona. Com 57 quilômetros de extensão, o São Gotardo é um emaranhado de acessos e poços, o que praticamente triplica seu comprimento. Parte dessas passagens são saídas para o caso de acidente. É o mais longo túnel do mundo, ligando a diminuta Erstfeld (cerca de 4.000 habitantes), no cantão de Uri, à minúscula Bodio (aproximadamente 1 mil), no cantão de Ticino, Sul do país.

Quando pronto, em 2019, depois de 20 anos de construção, o túnel carregará cerca de 8 milhões de passageiros por ano, e 40 milhões de toneladas de carga. Serão 300 trens/dia, sendo 10% deles de passageiros e atingindo até 250 km/h - os de carga chegam a 100 km/h. Mas, antes disso, ficará dois anos em testes de segurança. Nesse período, passarão por ele apenas trens de carga.

Mudança de mentalidade - O resultado de túneis gigantescos, escolas, políticas, planejamento detalhado, pontualidade repercute na outra ponta, onde está, por exemplo, o turista. Chega-se ao aeroporto de Genebra, aperta-se o botão de uma máquina, e ela fornece gratuitamente um bilhete válido por cerca de uma hora e meia para o transporte público da cidade. Chega-se ao hotel, e lá está o cartão com o nome do hóspede que dá direito de usufruir de graça o transporte público da cidade em sua estada.

A ideia por trás do ‘grátis', deduz-se, é simples (e inteligente): turista que se movimenta desfruta de (e gasta em) vários pontos da cidade. Fica mais satisfeito, e a economia local agradece.

O Brasil será sede de dois grandes eventos nos próximos anos. Agregue-se a isso resultado de pesquisa recente: para os empresários daqui, o principal entrave ao crescimento econômico são os transportes - principalmente o rodoviário e aéreo. Este último é a enxaqueca dos eventos da metade desta década.

Para 2014, o governo brasileiro pretende investir R$ 6,4 bilhões. Números respeitáveis. Mas entidades empresariais ligadas aos transportes são categóricas: não é só questão de dinheiro. É de filosofia, de administração.

A política - ou melhor, filosofia - de transporte da Suíça talvez tenha boas lições. Por lá, encurtar uma viagem em minutos vale milhões. Meio ambiente é também obsessão - daí reduzir o número de caminhões que cruzam o país de 1,1 milhão, hoje, para 650 mil, em 2020.

Imagine que atrativo para um turista receber num hotel no Brasil um cartão que lhe dê direito de usufruir do transporte público de nossas cidades? São decisões que devem ser de governo. A Suíça já as tomou há muito tempo. Mas isso exige algo mais profundo: mudança de mentalidade.

* O jornalista viajou a convite do governo suíço




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