É impossível ficar indiferente aos textos do grande polemista Nelson Rodrigues (1912-1980), que completaria hoje 99 anos. Excessivamente rotulado, o dramaturgo pode ser tudo, exceto morno. Sem qualquer intenção de alcançar a unanimidade, considerada "burra", suscita até hoje paixões e ódios.
Para a data do centenário, no próximo ano, já está previsto o lançamento de uma fundação virtual exclusivamente dedicada ao dramaturgo - que também foi repórter policial, cronista esportivo e escritor. Capitaneado pelo diretor de teatro Marco Antônio Braz, o site deverá reunir, pela primeira vez, dados hoje dispersos.
PIONEIRISMOS
Reconhecido como o maior dramaturgo brasileiro, o recifense, radicado no Rio de Janeiro, foi "divisor de mares", conforme denomina Antunes Filho, diretor do Grupo Macunaíma. "Ele veio na contramão quando todo o teatro brasileiro estava na comédia de costumes", diz. Com a estreia da peça "Vestido de Noiva" em 1943, pela primeira vez uma obra dramática era exibida no País.
Outro pioneirismo de Nelson Rodrigues marca a história do teatro: a dramaturgia ingressava no domínio da literatura. "Ele escrevia, escrevia, escrevia e o poeta estava sempre ali. Sua obra relampeja genialidade", defende Antunes Filho.
Eloísa Vitz, diretora do Grupo Gattu (que já montou as peças "Viúva, Porém Honesta", "Dorotéia" e "Boca de Ouro"), acrescenta: "Além de poéticos, os diálogos são contundentes. Colocam em cena discussões muito fortes como assassinatos, adultérios e incestos".
No universo rodriguiano, os personagens estão sempre divididos por uma tensão "clássica": o conflito entre o instinto e a norma. "Ele dá voz às pessoas que são norteadas pelos desejos puros, explícita ou implicitamente", conta Eloísa.
Sempre ligados à perversão moral, quando não sexual, os dramas familiares e sociais eram obsessões temáticas. O tom trágico é reflexo de sua vida. "Ele conviveu com a tragédia na família (aos 14 anos, viu o irmão ser assassinado) e a tragédia como repórter policial. Ele precisava dessas coisas terríveis para dar dinâmica aos personagens que iria criar", diz Antunes Filho.
REJEIÇÃO
Tamanha foi a surpresa para os anos 1940 que Nelson recebia vaias da plateia, mas não deixava de retrucar: "burros!". "Ele passava de teatro em teatro, batia de porta em porta. Sofria muito para encenarem as obras que escrevia, tanto é que às vezes precisava ele ser o ator", lembra Antunes Filho.
Na época, até os profissionais de teatro levavam na piada os textos. Falavam, por exemplo, que Nelson Rodrigues se referia aos próprios parentes quando escreveu "Álbum de Família". "Diziam que a peça apresentava uma casa de loucos", completa o diretor.
Depois, era "proibido" montar Nelson Rodrigues porque ele era considerado reacionário. "Só posso dizer que não foi adequado ele estar ao lado dos militares durante a ditadura. Agora julgar profundamente um homem, quem sou eu?", pergunta o diretor.
Antunes, inclusive, tentou montar uma peça, mas foi insistentemente desaconselhado. "Essa fase passou com a abertura política, mas ainda hoje há pessoas que continuam no submarino, em sua guerra particular", analisa.
ABERTURA
O diretor se sente responsável pela abertura de Nelson Rodrigues. Coube a ele a encenação "Nelson Rodrigues - O Eterno Retorno", reunião de quatro peças, que estreou em 1981, com o grupo que daria origem ao Centro de Pesquisa Teatral, sediado no Sesc Consolação.
Desde então, as suas peças não saíram mais de cartaz. "Nelson é o nosso Shakespeare. Deve ser montado o tempo inteiro para que a nova geração possa conhecê-lo e para que o público consiga revisitá-lo", afirma Eloísa.
Em São Paulo, está em cartaz o espetáculo "Memória da Cana", uma versão da Companhia Os Fofos Encenam para a peça "Álbum de Família". Com direção de Newton Moreno, o grupo lê a obra à luz de Gilberto Freyre no espaço homônimo (Rua Adoniran Barbosa, 151, São Paulo. Tel.: 3101-6640).
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