O crack de frente e de perto é ainda mais assustador. A equipe do Diário percorreu os principais pontos de consumo da droga no Grande ABC, conversou com usuários e constatou que o problema está espalhado e encravado em todas as cidades da região.
Não existe uma única cracolândia, como a da Capital, com centenas de pessoas perambulando de um lado para o outro. O que há são locais menores, em que a história se repete, seja embaixo de viadutos, em fábricas abandonadas, estações de trem, postos de combustíveis desativados, praças e vielas.
Segundo pesquisa do governo federal, o crack já chegou a 98% dos municípios brasileiros. As cidades da região estão incluídas no grupo. Esses pontos são, na maioria das vezes, o próprio lar dos viciados. Sujeira, mau cheiro, cachimbos e abandono do poder público são marcas na vida dessas pessoas.
A presidente Dilma Roussef colocou o Plano Nacional de Enfrentamento ao Crack como prioridade de seu governo, mas até o momento apenas Diadema e São Bernardo foram inseridos no programa e receberam R$ 1,9 milhão para financiar tratamentos. As demais cidades ainda não apresentaram planos.
As cracolândias do Grande ABC saltam aos olhos da população. E também são conhecidas dos policiais, das administrações municipais e, principalmente, dos profissionais de Saúde que lidam com este problema diariamente. "Estamos enxugando o chão com a torneira aberta", disse um psicólogo, que trabalha no tratamento de dependentes químicos.
Seguindo esses passos, a reportagem foi até os lugares para ouvir histórias de completa entrega à droga. "Quem está aqui, tá (sic) porque quer. Aqui só sai um em um milhão", sentenciou Ricardo, 25 anos, em Diadema, que usa o crack desde os 16.
O rapaz carrega as marcas mais comuns entre os nóias, como eles próprios se definem: falta de dentes, lábios e mãos queimados. Na noite da última quarta-feira, ele tinha acabado de voltar da casa da mãe, no bairro de Piraporinha, de banho tomado e com roupas limpas, mas por pouco tempo. "Minha casa é a rua, não tem jeito, sei que vou me drogar até o fim." Ele e cerca de dez pessoas vivem em um posto de combustíveis abandonado na Avenida Casa Grande, em Diadema.
Prestes Maia é um dos pontos de maior concentração
O ponto mais conhecido e com maior número de usuários de crack fica em uma das avenidas de maior movimento da região, a Prestes Maia, que liga Santo André a São Bernardo, mais precisamente embaixo do viaduto Sacadura Cabral.
Moises, 43, abandonou a família para viver ali. São mais de 20 anos de consumo diário da droga. "Não tem jeito, todo dia é a mesma fissura, aqui é a minha vida. Eu quis assim", comentou.
Clarissa há sete anos mora nas ruas e nos últimos meses o viaduto é o seu lar. No dia em que a equipe do Diário visitou o local ela estava em abstinência da droga. Muito agitada, a mulher retorcia o rosto e chegou a implorar por dinheiro.
Em São Bernardo são vários pontos de encontro de viciados, como na antiga fábrica da Brastemp, embaixo do viaduto entre as avenidas Marechal e Faria Lima e em frente ao bar Tudo de Bom, também na Faria Lima. Meninas cheiram cocaína e bebem em plena rua. Na praça ao lado também há grupos consumindo diversas drogas, inclusive o crack. É parra lá que a maioria dos adolescentes vai quando foge do tratamento.
Em São Caetano, o local mais conhecido é as ruínas da Matarazzo, no bairro da Fundação. Em Mauá, o local preferido dos dependentes químicos é a estação de trem da CPTM. Em Rio Grande da Serra e Ribeirão Pires, os viciados se concentram nas regiões centrais.
‘Gosto do barato, não tem como largar'
Os efeitos do crack são conhecidos. Na maioria das vezes, os jovens largam tudo e vivem em função da droga. Criou-se um senso comum de que os viciados na pedra morrerão rápido e que perdem todo o controle sobre si.
A equipe do Diário entrevistou vários usuários em pleno local de drogadição e em todas as conversas, tanto homens e mulheres, disseram que sabem onde estão pisando. "Isso aqui não é mundo para ninguém", disse Leonardo, 27, embaixo de um viaduto em São Bernardo. Ele contou que fuma crack desde os 13 anos e atualmente consome até 30 pedras por dia. "Todo dinheiro que ganho aqui no farol é para a droga ou para a me alimentar", contou.
Para a pesquisadora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Andréa Costa Dias, que coordenou estudo entre usuários na Capital, o resultado da sua pesquisa que acompanhou 107 viciados por 12 anos, trouxe dados que derrubaram diversas teses de que a droga é letal.
Segundo a pesquisa, 25% dessas pessoas haviam morrido, 13% mantiveram o consumo por mais de uma década e 29% estavam sem usar há mais de cinco anos. "Infelizmente o crack é pouco retratado e estudado, ainda estamos engatinhando na busca de um tratamento ideal", falou a profissional.
USUÁRIOS
Em Santo André, Moises, 43, está entre os mais velhos que consomem a droga diariamente. Ele iniciou o uso de drogas em 1986 com cocaína e maconha. Nos anos de 1990, começou sua vida no crack, turbinada com o álcool. Calmo, sereno e educado, o homem no primeiro momento exibiu as mãos marcadas pelas queimaduras.
Mesmo após duas décadas de consumo diário, Moisés não carrega na face a alcunha de nóia. "Sei do meu problema, não tem jeito, gosto do barato. Minha família me abandonou, com razão. Na real, o que tenho medo é de pegar Aids na rua, do resto, tudo que vier é lucro", contou ele, que recolhe material reciclado na rua para bancar o vício.
A maioria dos usuários contou que não tem meios e não quer sair dessa vida. "É muito bom, a cada paulada (uso do crack) você vai mais longe, não tem como largar", contou Jéferson, 25, viciado desde os 9 anos, em Diadema.
Aos 14 anos, garotas lutam contra o vício
A fala e o olhar são fortes. Carregam pesos e problemas de mulheres adultas, como a violência doméstica, a falta de perspectiva e a dor. Elas têm 14 anos, mas já "beberam, fumaram, baforaram, tomaram balinhas e traficaram, além de morarem nas ruas".
A naturalidade que expressam ao contar que foram espancadas, expulsas de casas e perderam um bebê impressiona.
A depressão e a solidão são as atuais companheiras de Alice e Micaela. Mas em um passado recente, esses sentimentos eram escondidos atrás da cocaína, maconha, lança-perfume, êxtase e do submundo do crime na periferia de São Bernardo. Uma começou aos 10 anos; a outra, aos 13. Sobre o crack viram de perto e apenas as amigas e amigos usavam. "Isso é coisa de nóia", exclamou Alice.
A prostituição também chegou muito perto delas. "Minha amiga saía com seis caras ao mesmo tempo para conseguir drogas para a nossa turma", contou Alice.
Atualmente elas estão em processo de desintoxicação no Espaço Andança da Fundação Criança de São Bernardo. Passam por acompanhamento e vivem em uma casa com profissionais capacitados. Elas já tiveram saídas não-autorizadas para as ruas. Retornaram e demonstram que querem largar o vício.
Alice lembra uma menina de 11 anos, que chegou na residência pesando 38 quilos. O pai usa crack há anos, inclusive na sua frente. A mãe morreu quando tinha 10 anos. Presenciou o suicídio da madrasta e morou com um traficante. "Com essa vida você quer que eu faça o que?", indagou. "Quando minha mãe morreu, eu me revoltei. Mas a facilidade com que se encontra droga é muito grande", explicou. Nos últimos dias, a franzina morena sofreu uma crise de abstinência na escola, disse que chegou a pensar em usar, mas lembrou do tratamento e conseguiu resistir.
Micaela é mais tímida, cresceu com os pais e irmãos, é a filha caçula. Mas a facilidade em encontrar drogas e as brigas familiares a fizeram afundar no uso abusivo de maconha e cocaína. No pescoço, carrega marcas de arranhões, fruto das brigas com o ex-namorado. A menina também já morou com chefe de um ponto de drogas e atuou como traficante. "Ele não deixava eu usar, chegou a me prender dentro de casa, mas não tinha jeito", contou. A garota relembrou com naturalidade os acertos e o dia a dia do tráfico, além de ter presenciado casos de violência extrema, como a morte de pessoas.
Para elas, o uso do crack fica sempre condicionado à terceira pessoa. Elas não admitem ser usuárias. "Ninguém assume que usa crack nesta idade", contou uma psicóloga que atua há mais de cinco anos no combate à drogadição.
Sobre o futuro, as garotas pensam como outras meninas de sua idade, mas com ressalva. "Preciso largar essa vida. Depois quero encontrar um rapaz trabalhador e ter uma família".
Trabalho de ‘formiguinha' ajuda a superar dependência
A Fundação Criança de São Bernardo é a responsável pelas políticas de enfrentamento ao crack na cidade. A disposição dos coordenadores é louvável. Um deles foi agredido e atualmente caminha com dificuldade. "Não podemos abandonar. Quem vai ajudá-los?", perguntou a vítima.
"O combate ao crack é um trabalho de formiguinha", disse a coordenadora do Espaço Andança, Kátia Beraldi. Os resultados demoram e às vezes nem aparecem. Mas, para quem trabalha diariamente, cada passo de uma criança ou adolescente é uma festa.
A gerente de acolhimento da Fundação Criança, Maria Helena Placeres Simões, explica que os adolescentes estão em fase de construção da personalidade. "Por isso existe a perspectiva de esperança", comentou.
A instituição atualmente cuida de 11 jovens que estão ameaçados de morte pelo tráfico, além do espaço para receber dependentes químicos. "O impressionante é que acordam diariamente com vontade para usar a droga. Conversamos e mostramos que existe outro caminho", explicou Kátia.
São Bernardo também conta com o serviço dos consultórios de rua, além da residência terapêutica, Caps (Centro de Atenção Psicossocial) para jovens e adultos. Há ainda a expectativa para a construção de um Caps infantil 24 horas no terreno da Fundação.
Diadema traça meta ousada: acabar com o crack na cidade
A prioridade da atual administração de Diadema é acabar com o crack na cidade. A proposta é audaciosa, mas necessária. O plano de combate está alinhado com o Ministério da Saúde, o que pode facilitar a parceria e o sucesso da empreitada.
Segundo a coordenadora da Saúde Mental de Diadema, Cibele Neder, uma frente articulada entre várias secretarias, como a da Saúde, Cultura e Defesa Social trabalha para enfrentar esse problema crônico.
"Vamos trabalhar com a redução de danos. Não adianta reprimir, é preciso criar um vínculo com essas pessoas para iniciar o tratamento", explicou a psiquiatra.
Um dos primeiros lugares a ser visitado poderia ser o posto de combustível desativado na Avenida Casa Grande. No local havia momentos de tensão e de tranquilidade. Era necessário apenas algum adulto começar a acender o isqueiro em um dos cantos para se iniciar a confusão. Vários levantavam e discutiam entre si. A euforia chamava atenção de quem passava em frente, com exceção de uma viatura da Polícia Militar, que passava constantemente pelo local.
"Precisamos olhar para a singularidade de cada caso e tentar solucionar", disse a coordenadora. Entre as atividades previstas está o consultório de rua, transformação do Caps AD (Álcool e Drogas) em atendimento 24 horas.
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