Após a exibição de Chico Xavier para convidados, na cidade de Paulínia, na terça-feira passada, à noite, o cineasta Daniel Filho dá sua única entrevista individual para a imprensa escrita, sobre o filme inspirado na vida do médium. O encontro ocorre de madrugada, em um restaurante de Campinas, enquanto o diretor e a mulher - a cantora Olivia Byington - jantam. Ocorrem duas ou três interrupções. Nelson Xavier, um dos três atores que fazem o protagonista, anuncia que vai fazer um discurso. Diz que viu o filme pela primeira vez em condições e que gostou. Propõe um brinde para Daniel Filho. O próprio Daniel faz seu discurso, agradecendo à equipe. O clima é de festa.
Chico Xavier será lançado na próxima sexta-feira, com mínimo de 300 cópias. A distribuidora Downtown estima que poderão chegar a 400. O feriado prolongado de Páscoa, o centenário de nascimento do médium, tudo contribui para a expectativa de um grande sucesso.
E Daniel Filho tem a Globo por trás. Ele corrige - "Falei lá no palco do teatro que tenho um plim-plim sobre a minha cabeça. Mas não é verdade que tenho a Globo por trás de mim. A Globo é que me tem. Pertenço ao grupo que fez aquilo lá."
Os filmes brasileiros que seriam presumíveis estouros de bilheteria neste começo de ano não corresponderam - Lula, o Filho do Brasil e High School Musical - O Desafio. Chico Xavier chega agora para garantir os bons números do ano? "Isso é cruel. Ele está sob uma pressão enorme", diz Olivia. Daniel não arrisca previsões. Acha que Chico Xavier faz 1 milhão, talvez 1,5 milhão de espectadores. E mais não arrisca.
Inicialmente, ele seria ‘apenas' o produtor de Chico Xavier. Foi persuadido a dirigir. Saturnino Braga, da empresa Sony, jogou a carta decisiva - disse que Daniel devia dirigir o filme ‘pelo Vanucci'. Augusto César Vanucci foi como um irmão para Daniel Filho. Começaram juntos, integraram o grupo que fez a Globo. Vanucci era espírita, tinha verdadeira devoção pelo médium mineiro. E assim foi: ‘pelo Vanucci', Daniel dirigiu.
Consolações. Daniel Filho diz que não é um homem de fé. Ou melhor, tem fé, mas ela não passa necessariamente pela religião. O personagem Chico o atraiu por sua fé no humano, por sua pregação do amor. O repórter arrisca que o filme poderá conquistar o público pelo consolo que proporciona. Durante todo o tempo, Chico Xavier, nas suas três fases - interpretado por Mateus Costa, Ângelo Antônio e Nelson Xavier - está sempre elaborando a dor da perda, tentando compensar (e preencher) o vazio, dele mesmo e dos outros.
"É um grande personagem", avalia o diretor. Resumindo a experiência, ele diz que sai deste filme com fé - esperança - renovada no homem, mas permanece como sempre foi: ateu.
Ator comunista não enxerga contradição
Quando se pergunta como foi possível a ele, ator em filmes politicamente engajados, e membro de carteirinha do antigo Partido Comunista, viver na tela a figura de um ícone espiritual brasileiro, Nelson Xavier responde com uma pequena história. "Quando vi meu grande amigo Carlos Vereza interpretar o médium Bezerra de Menezes (no filme homônimo), me perguntei de que maneira um comunista como ele fora capaz de fazer esse papel." Com voz mansa, Nelson completa a resposta: "No fundo, sofremos de ignorância e preconceito".
Conta que anos atrás recebeu de presente o livro As Vidas de Chico Xavier. Na dedicatória, o autor, Marcel Souto Maior, escreveu que seu sonho era ver Nelson vivendo o médium nas telas. A leitura do livro teve papel fundamental na decisão de aceitar o convite. "Fui sendo envolvido por uma emoção progressiva", conta, "pois percebi que estava lendo a vida de um santo. Ele se devotou à caridade e ao bem do próximo, e pregou o amor de modo tão radical, que eu não resisti."
Não deixa de ser um estranho caminho para esse ator de 68 anos, que passou pelo Teatro de Arena e pelo Centro Popular de Cultura da UNE, duas das matrizes intelectuais nas quais se cozinhou o pensamento de esquerda no Brasil dos anos 1950 e 1960. No cinema começou em 1959 com Cidade Ameaçada, mas seu primeiro grande filme, e talvez maior personagem no cinema até hoje, seja em Os Fuzis (1963), do seu amigo Ruy Guerra. Em papel densamente político, Nelson interpreta Mário, soldado que protege um armazém ameaçado por uma população faminta prestes a saqueá-lo.
É um dos filmes mais radicais do Cinema Novo. Seria retomado anos mais tarde, em 1976, desta vez sob a forma de uma codireção entre Nelson e Ruy: em A Queda, filme de padrões estéticos ousados, ele volta a interpretar Mário, desta vez na condição de ex-soldado e empregado da construção civil. São pontos altos de uma filmografia que soma 40 longas-metragens com títulos como A Falecida, de Leon Hirszman, A Rainha Diaba, de Antonio Carlos da Fontoura, O Mágico e o Delegado, de Fernando Cony Campos, Brincando nos Campos do Senhor, de Hector Babenco, e Vai Trabalhar, Vagabundo, de Hugo Carvana.
Nelson é assim. Foi esse rigor intelectual que o fez se questionar antes de assumir o papel de Chico Xavier. Mas foi tomado e vencido pela emoção: "Eu que havia criticado o Vereza, acabei pagando pela língua", diz. E depois se conforta: "Mas qual a contradição que existe entre o socialismo e a solidariedade humana?" Ele mesmo responde: "Nenhuma".
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