Um grande cemitério de sucatas foi deixado há mais de dez anos no Grande ABC e hoje os túmulos são ocupados por usuários de drogas ou moradores de rua. Diariamente, milhares de pessoas passam ao lado de restos de equipamentos enferrujados. Quem usa a linha 10 – Turquesa da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) pode facilmente olhar pelas janelas dos trens e ver vagões, trilhos, vigas e postes deteriorados pelo tempo.
Seguindo para Rio Grande da Serra, os mais atentos passageiros também podem ver pequenas casas próximas aos trilhos, com arquitetura antiga e um fiozinho de fumaça saindo das moradias.
Tudo isso pertencia à extinta RFFSA (Rede Ferroviária Federal), que por 40 anos atendeu 19 Estados brasileiros, como São Paulo. Em 1996, a rede possuía 22 mil quilômetros de linhas. Depois da extinção oficial da empresa, em 2007, uma comissão de inventariança ficou responsável por catalogar e identificar imóveis e implementos não operacionais.
O que aconteceu foi que ninguém podia por a mão nesse espólio antes da conclusão e destinação do inventário. Por isso, o cemitério permanece na linha da CPTM, que assumiu o transporte ferroviário em 1992.
Da Estação da Luz, no Centro de São Paulo, à Estação de Rio Grande da Serra, existem mais de 200 vagões apodrecendo. A equipe do Diário chegou perto de grande parte dos vagões enferrujados no trecho. Nenhum funcionário da CPTM fez abordagem. O que se nota é o mesmo de quem passa em uma viagem de trem: pichações.
O abandono também permitiu que as carrocerias virassem canteiros naturais para o mato. Alguns trilhos estão abandonados há tanto tempo que já foram encobertos por terra. “Os moleques pulam o muro e ficam dentro dos vagões, fumando. O que a gente pensa é que estão se drogando. Muitas vezes acontecem brigas”, disse uma funcionária da limpeza da Estação Mauá.
De São Caetano até Rio Grande da Serra o cemitério é bem perceptível. A maioria dos vagões está encostada no lado direito do trem – para quem viaja sentido Rio Grande da Serra. Pouco além da última parada, rumo a Paranapiacaba, um vagão recebeu varal para secar roubas. No chão, papeis e pedaços de carvão traçam uma fogueira apagada e acesa por diversas vezes. Restos de comida atraem alguns insetos. O residente não estava em casa quando a reportagem esteve lá. Ao lado da casa improvisada, outros vagões estão despedaçados. Os trilhos já perderam o brilho espelhado do metal desgastado pela fricção das locomotivas.
A CPTM informou que as linhas são monitoradas, e que maquinistas são orientados a acionar a segurança quando veem transeuntes no trecho.
LIMPEZA
Até o fim do ano todas as ruínas da RFFSA na linha Turquesa da CPTM serão removidas pela MRS Logística, que opera os trens de carga. Através de uma portaria (89/2011) do Ministério dos Transportes, publicada em abril, a empresa adquiriu o espólio da rede extinta. Segundo o gerente de Concessão e Arrendamento da MRS, Sérgio Henrique Carrato, nos próximos meses será publicado edital para contratar terceirizada para remover o espólio inativo e fazer a destinação correta. “São vagões sem possibilidade de uso ou recuperação. A empresa contratada vai sucatear esse material parado”, afirmou.
Com a limpeza, a MRS foi autorizada a colocar mais de 700 vagões de carga em operação. “Desde 2007 estávamos tentando conseguir esse espólio, que nos causa transtornos, mas não é um processo rápido”, comentou.
Vizinho do trilho sente o vento dos vagões
A cada 20 minutos, aproximadamente, um trem passa próximo à casa de Deyvid da Silva Ferreira, 28 anos. De tão perto que está da linha de ferro, às vezes ele consegue sentir pela janela da sala o vento dos vagões em movimento. O chão treme um pouquinho. Portas fazem barulho, a mesa se movimenta, mas nada disso atrapalha a rotina da família.
Ele e sua mulher vivem em uma vilinha formada por três casas de madeira dispostas ao longo da ferrovia que passa por Ribeirão Pires.
Deyvid cresceu naquele lugar e herdou a residência do pai, que foi maquinista da RFFSA (Rede Ferroviária Federal). A mirrada vizinhança trata-se, na verdade, de seus familiares. A irmã mora com marido e filho à casa da direita e, à esquerda, os pais ficam com a moradia maior.
Fora o barulho dos trens, Deyvid, que trabalha como operador de cilindro em Santo André, não tem muito com o que se preocupar, como garante. “Aqui é muito tranquilo. Não tem ninguém por perto para incomodar”, disse.
Ele explicou que o pai se aposentou cedo na profissão e a rede disponibilizou a primeira residência. “Aqui tinha outras três casas. Mais à frente, outras famílias também ocupavam algumas casinhas. Mas as pessoas foram mudando e agora não tem muita gente que vive por aqui”, relatou.
Deyvid afirmou que não pretende sair do lugar. “Colegas sempre perguntam se eu já saí da linha de trem. Aqui é muito tranquilo e tenho boas lembranças. Não tenho pretensão de mudar.”
INVENTÁRIO
O diretor da regional de São Paulo do conselho de inventariança da RFFSA, Miguel Roberto Ruggiero, explicou que antigamente, quando a rede funcionava, era comum que alguns funcionários morassem nas casas ao longo do trilho.
“Essas pessoas pagam uma taxa, como aluguel. Hoje, muitos nem devem pagar”, contou. Essas residências – algumas estão espalhadas ao longo do trecho de Santo André, Mauá e Ribeirão – serão catalogadas para a inventariança. O diretor não soube explicar quando isso deve acontecer e qual será a destinação para os locais.
“É um processo que estamos fazendo em outros Estados também. Muitos passivos foram deixados pela rede”, ressaltou.
Casas guardam história em Rio Grande
A Vila do Pátio, em Rio Grande da Serra, ainda preserva o detalhamento arquitetônico das residências que serviram aos funcionários da antiga São Paulo Railway, que depois foi incorporada à RFFSA (Rede Ferroviária Federal). O conjunto de casas fica atrás da estação de trem. Antes de se formar como vila, o local abrigava escritórios da rede. Quem trabalhou nos estabelecimentos e até hoje mora ali é o funcionário público aposentado Raul Fernando de Olivares, 75 anos. Ele está lá desde 1960. “Eu passava a papelada para a Prefeitura de São Paulo pelo telégrafo”, contou.
Dez anos depois de ter mudado para a vila, seu Raul, já casado com dona Eliza, continuou na casa de madeira. De escritório público, ele transformou o local em bar e até hoje recebe clientes para ouvir e contar histórias.
A vila é um daqueles bairros mais afastados da região central da cidade. Por ali a vida segue calma e sem grandes acontecimentos. “Antigamente os maquinistas e ferroviários moravam aqui. Éramos amigos de todo mundo. Mas hoje muitos morreram ou se mudaram”, disse o aposentado. “Quem está nessas casas não conhece a história, não tem idéia da importância da estrada de ferro”, avaliou Raul.
As pessoas cruzam constantemente a linha férrea da MRS através da calçada Brasilino Lima Pinto. O nome é uma homenagem ao maquinista que se afogou no ribeirão próximo aos trilhos. “Era um maquinista que morava aqui e fazia parada em Paranapiacaba. Dizem que ele cometeu suicídio.”
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