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O médico e o monstro
Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
01/02/2007 | 20:26
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Muito se falou sobre a performance de Forest Whitaker como Idi Amin, o ditador de Uganda, no filme O Último Rei da Escócia. Ele concorre ao Oscar de melhor ator e é favorito porque carrega o filme com sua caracterização do líder populista carismático e simpático, a primeira vista, mas um genocida nato. A atuação de Whitaker é o que o filme tem de melhor. Feita esta ressalva, O Último Rei da Escócia é uma visita à história contemporânea, que mistura ficção e realidade.

O título, também do livro do inglês Giles Foden no qual é baseado, é uma referência a Amin, que admirava os escoceses – odiava os colonizadores ingleses, portanto – a ponto de se oferecer para liderá-los numa eventual luta para se separar da Inglaterra. Arrogância fazia parte de seu jeito de ser. Amin cravou na história a imagem de um líder que derrubou um presidente corrupto e ditador em Uganda, em 1971, prometendo uma nova era de esperança e mudança, um homem de coração simples debaixo do uniforme. O medo tomou lugar da esperança, a mudança nunca veio e quando ele despiu o uniforme de cordeiro mostrou as garras de lobo. Quem era contra o regime tirânico centralizado na figura de pai da pátria de Amin era ‘desaparecido’ do mundo.

Essa prática, que provocou a morte de 300 mil pessoas, mudou sua imagem inicial perante a opinião pública mundial. De um novo estadista africano que prometia a real independência do país passou a ser um mero ditadorzinho da escola de Stalin e Hitler, deposto em 1979. Sua imagem ficou desgastada graças ao episódio do seqüestro de um avião cheio de israelenses por terroristas pró-Palestina, apoiados por Amin, que ficaram retidos no aeroporto de Entebbe até serem resgatados por um comando israelense. Essa é a história.

No filme de Kevin Macdonald (seu primeiro longa depois do curta premiado com Oscar Um Dia em Setembro) o médico escocês recém-formado Nicolas (James McAvoy) quer fugir da sombra do pai doutor em medicina e decide aleatoriamente seguir para um lugar qualquer do mundo, menos o Canadá. Uganda é onde seu dedo aponta após girar um globo terrestre. Ele desembarca numa aldeia para ajudar o médico residente local e sua atraente esposa (Gillian Anderson, a agente Scully de Arquivo X, desta vez loira).

O encontro de Nicolas com Amin se dá ao acaso. Após se encantar com a empolgação do discurso inicial do ex-comandante das forças armadas, que acaba de derrubar o antigo regime, Nicolas recebe um chamado para atender o presidente, ferido ao atropelar uma vaca com seu carro. Amin o acha simpático, especialmente por ser escocês, e o convida para ser seu médico particular e conselheiro. Nicolas se envolve com as benesses palacianas – as festas orgiásticas e as loucuras do ditador, como presidir cerimônias vestido com kilt (saiote) escocês – e demora a perceber o que ocorre no país real e com ele próprio, que acaba participando sem perceber das torturas.

Nicolas representa um pouco de cada personagem do círculo íntimo de Amin descritos no livro, inclusive do médico do ditador encontrado morto ao lado de sua amante, a terceira mulher de Amin, que fora esquartejada.

A história é narrada sob o ponto de vista de Nicolas, que começa como um ingênuo seduzido pelo carisma, e termina sentindo na pele a realidade que não quis enxergar.

Basta dizer que ele passou pela mesma experiência que outro escocês, o personagem de Richard Harris, viveu no filme Um Homem Chamado Cavalo, quando se encontrou com índios dos Estados Unidos.

O ponto de vista de Nicolas é também o mesmo dos brancos ocidentais. Enquanto o sangue não chega ao nariz, deixam os genocidas e loucos de pedra assumirem países sem importância e torturar à vontade seu próprio povo. Amin não passava de um líder tribal de uniforme, que insistia em praticar rituais dos confins da África.

Nicolas pensou ter encontrado uma figura paterna e uma impressão da África ideal, mas não passava de um ‘macaco branco’ de Amin, representando o colonizador que o africano podia abraçar, fustigar e humilhar.

O filme não pretende resolver a querela secular entre brancos e negros, mas também não se vale de maniqueísmo de ocasião. Começa como comédia e paulatinamente vai se tornando uma tragédia. Mostrando e escondendo dor e loucuras, o diretor constrói sua narrativa sobre o lado escuro da alma, tenha ele a face que for.

O ÚLTIMO REI DA ESCÓCIA (The Last King of Scotland. Inglaterra/Alemanha, 2006). Dir.: Kevin Macdonald. Com Forest Whitaker, James McAvoy, Kerry Washington, Gillian Anderson. Estréia nesta sexta-feira no Grande ABC e circuito paulistano. Duração: 121 min. Classificação etária: 16 anos.



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